A atriz Zezé Motta lembra como se fosse hoje o dia em que recebeu o telefonema que mudou sua vida. Do outro lado da linha, o produtor Jarbas Barbosa avisava que ela tinha sido escolhida para interpretar o papel-título do filme de Cacá Diegues, “Xica da Silva” (1976). “Boa tarde, Chica da Silva!”, saudou Barbosa, brincalhão. “Quase desmaiei!”, recorda a atriz, aos risos.
Por André Bernardo, da UOL
Quarenta anos depois, Zezé Motta volta a trabalhar em uma produção sobre a escrava mais famosa da história do Brasil. Dessa vez, ela irá dirigir o documentário A Rainha das “Américas – A Verdadeira História de Chica da Silva”, que pretende passar a limpo a trajetória de Francisca da Silva de Oliveira, que ganhou fama e fortuna ao conquistar o coração do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira. Sua morte completa 220 anos.
“Chica é daquelas personagens que a gente não sabe muito bem onde termina a história e começa a ficção. Em muitos registros, é tratada como prostituta. Mas, ela e João Fernandes viveram juntos 17 anos e tiveram 13 filhos. Sempre quiseram desqualificá-la, mas nunca conseguiram”, diz a atriz.
O projeto do documentário inclui desde a exumação da ossada de Chica da Silva, sepultada na tumba nº 24 do cemitério da Igreja de São Francisco de Assis, em Diamantina, até a reconstrução de seu rosto em 3D, tarefa que está a cargo do designer Cícero Moraes.
“Ainda não sabemos como ela morreu, mas já descobrimos que tinha por volta dos 60 anos e que sofria de reumatismo”, adianta a roteirista Rosi Young. O projeto prevê, ainda, a construção de uma escultura em Diamantina (MG) e a criação de um holograma em tamanho real. “Se tudo der certo, a imagem de Chica será projetada durante o desfile de uma escola de samba em 2018”, diz Rosi.
Uma Chica, muitas versões
O documentário A Rainha das Américas, que tem previsão de lançamento para 2017, é apenas um dos projetos que prometem recontar o mito da escrava que virou “rainha”. Os outros são o romance “Chica da Silva – Romance de Uma Vida”, da jornalista Joyce Ribeiro, que já chegou às livrarias, e a biografia “Xica da Silva – Cinderela Negra”, da escritora Ana Miranda, que será lançada no segundo semestre.
“Chica tinha tudo para desistir, mas lutou até o fim pelos seus sonhos. Viveu um relacionamento inter-racial, zelou pela educação dos filhos e, depois da ida do marido para Portugal, administrou, sozinha, os negócios da família. É moderna até para os dias de hoje”, opina Ribeiro.
O primeiro relato de Chica de que se tem notícia está no livro “Memórias do Distrito Diamantino”, de 1868. Foi seu autor, o advogado Joaquim Felício dos Santos, quem imortalizou a personagem como dona de um apetite sexual insaciável.
“Não possuía graça, não possuía beleza, não possuía espírito; enfim, não possuía atrativo algum que pudesse justificar uma forte paixão”, descreveu o autor. Detalhe: ele jamais conheceu Chica ou se baseou em qualquer fonte histórica.
Quase um século depois, o médico Agripa Vasconcelos lançou “Chica que Manda”,em 1966. Se Joaquim Felício retratou Chica como lasciva e sedutora, Agripa reforçou o estereótipo da mulher sádica e cruel. Num trecho do livro, conta que Chica mandou cortar a boca de uma suposta amante do contratador.
Autor de “Eles Formaram o Brasil”, o historiador Fábio Pestana Ramos explica que a ex-cativa viveu segundo os rígidos padrões morais de sua época. Prova disso é o fato de ter sido sepultada no cemitério da Igreja de São Francisco de Assis – um privilégio concedido à elite branca.
“Houve muitas iguais a ela, que ascenderam socialmente graças ao concubinato, mas nenhuma outra teve união estável com figura tão poderosa nem deixou herdeiros que tiveram tanta importância na formação da elite brasileira. Por essas e outras razões, sempre foi alvo de preconceito”, explica Fábio.
Figura histórica é fonte de inspiração para diversas obras
Fonte de inspiração
Ainda hoje, não se sabe ao certo quando nasceu Chica da Silva. Estima-se que tenha sido entre 1731 e 1735, no povoado de Milho Verde, perto do arraial do Tejuco, atual Diamantina. Filha de um português, Antônio Caetano de Sá, com uma africana, Maria da Costa, tornou-se escrava, ainda adolescente, do médico Manuel Pires Sardinha, com quem teve um filho, Simão, em 1751.
Comprada por João Fernandes no Natal de 1753, conquistou sua alforria pouco depois. Entre 1755 e 1770, teve 13 filhos – nove mulheres e quatro homens – todos com o contratador. João Fernandes morreu em 1779 e, 17 anos depois, Chica, mais exatamente no dia 16 de fevereiro de 1796.
Desde então, já inspirou poesia, filme, canção, novela e até enredo de escola de samba. Foi assistindo ao desfile do Salgueiro, em 1963, que Cacá Diegues teve a ideia de levar a história de Chica para o cinema.
“Construí meu filme como uma fábula política. O conde português simbolizava o imperialismo, o contratador, a burguesia; os moradores da cidade, a classe média; o inconfidente, os revolucionários, e a Xica, a alegoria vitoriosa e solar do povo”, detalha o cineasta.