Documentário sobre Ruth de Souza reverencia todas as mulheres pretas

Enviado por / FonteEcoa, por Tony Marlon

Num dia 8 feito hoje, Ruth de Souza estreava no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O ano era 1945. Num dia 12, feito o próximo domingo, ela alcançaria 103 anos de vida. Sua passagem foi em julho de 2019. O que aconteceu entre um dia e outro ganha os cinemas nesta quinta-feira (9) com “Diálogos com Ruth de Souza”, dirigido pela Juliana Vicente. Prepare-se, que o filme já começa assim:

Uma câmera que avança devagarinho por uma casa vazia, apenas a voz de Juliana ao fundo, que diz: “A primeira vez que eu fui na casa da Ruth, fiquei impressionada. Tinha um tapete vermelho que ia da portaria até a porta da casa dela. Eu estava chegando na casa de uma diva”. Depois daqui são 105 minutos de mergulho na história e nas memórias de umas maiores artistas do Brasil e do mundo. Ao assistir, você entenderá como se chega à uma conclusão dessas.

“Reverenciar a Ruth é reverenciar todas as mulheres pretas, todas as mulheres pretas que vieram antes, todas as mulheres pretas que virão depois”, declara Juliana. Você a conhece da direção do também histórico “Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo”. Outro documento importante para contar os Brasis que o Brasil insiste em deixar de lado.

“Como realizadora também queremos fazer outras coisas para além de documentar tudo que nos foi apagado. Mas é a única forma que a gente tem também de reconstituir um pouco a nossa história”. Contra a produção social do esquecimento, o cultivo coletivo da lembrança.

Para costurar os caminhos de Ruth pela vida, a diretora viajou por dez anos ao seu encontro. Os últimos de sua vida por aqui. Em paralelo, um tanto de pesquisa. Ruth não acreditava que alguém viesse de tão longe para escutá-la. Gente que estava bem mais perto já não fazia isso. Quando começaram as gravações, Juliana explica que a artista “estava num momento bastante solitário, em alguma medida. Depois isso foi melhorando”. Ela entende que desde 2015 existe um movimento de retomada da celebração dessas memórias.

Com uma década de entrevistas, a produção encontrou muitos detalhes. Por exemplo, o exercício do tempo sobre o corpo da Ruth. A mobilidade que foi se reduzindo, a voz ficando baixinha. Só uma coisa não mudou: a sua lucidez, a sua presença. O brilho que Ruth distribuía para as pessoas sentadas ao seu redor.

Emocionante mesmo é quando Juliana aparece sentada no chão, Ruth do lado, num sofá. O encontro de dois tempos. Elas revisitam fotos, documentos antigos que mostram como os Estados Unidos se apaixonaram por Ruth a ponto de mandar um telegrama ao Itamaraty pedindo apoio para lembrá-la de uma bolsa de estudos que havia ganhado. Ruth, uma prioridade diplomática. Foram muitas histórias, muitos atravessamentos como diz Juliana.

“Gravar não era um processo muito simples. Havia muitos momentos de encantamento e emocionantes de aprendizado, mas ao mesmo tempo não era fácil ir até lá. Mexia muito comigo emocionalmente e nem sempre de uma maneira positiva”, desabafa. Assistindo aqui de longe, do tempo e do espaço daqueles encontros, eu posso até imaginar um destes momentos. É quando Ruth diz:

Minha mãe era lavadeira, sábado ele ia entregar roupas. Um dia eu fui junto na casa de uma das freguesas. Minha mãe toda orgulhosa porque eu já sabia ler, falou ‘ela sabe ler, ela quer ser artista’. A mulher: ‘Essa menina tá querendo colocar o chapéu onde não alcança’. Eu era uma menina, mas aquilo me feriu.

É desumano que existam humanos que digam coisas assim a uma criança e durmam tranquilamente à noite. Sobre isso, Juliana reflete:

“Quase 100 anos depois e a pessoa ainda está marcada por essa experiência. Que é uma experiência que tira essa possibilidade de sonhar, tira a possibilidade de ser sensível, tira a possibilidade de uma série de coisas. Eu acho que dá para ter uma dimensão do quanto que o racismo pode ser”.

Juliana Vicente e Ruth de Souza em cena do documentárioImagem: Divulgação

Como se não bastante a imensidão que é a Ruth de Souza e o olhar cirúrgico de Juliana para trançar essa história, ainda tem mais. Neste filme, sempre tem mais. A produção apresenta um cruzamento com o universo mitológico africano através do encontro com as Yabás, orixás femininas, em uma interpretação ficcional e transcendental da vida da artista. Não se distraia nos primeiros dois minutos, há uma imagem e frase especialmente poderosa neles.

Poderia escrever sobre o encontro de Ruth e Juliana por horas, mas prefiro que você se presenteie indo aos cinemas de amanhã em diante. Celebre ambas. Foi poderoso para quem construiu o filme, será poderoso para cada pessoa que o assistir. Que sejam muitas, ambas merecem.

“Tudo que eu aprendi e a oportunidade de ter trocado com ela, de ter ficado perto e ter tido essa autorização para contar essa história. Eu faria tudo de novo, porque foi muito importante para mim. Estou muito feliz e grata por tudo isso”, finaliza Juliana.

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