Dr. Rosinha: A maioria dos agressores sexuais de mulheres é conhecida

A cada final de ano, os discursos se repetem: vereadores, deputados e senadores sobem às tribunas dos parlamentos Brasil afora para desejar a todos os brasileiros e brasileiras um bom natal e um feliz ano novo. As vésperas do primeiro de maio, a coisa também se repete: lá está o rosário de parlamentares a comentar sobre o dia do trabalhador. E assim vai o ano inteiro, data após data, ano após ano.

Foi assim na semana passada, às vésperas do 8 de Março: todos falam do dia da mulher e, com algumas exceções, o discurso é o mesmo. Parlamentares homenageiam, em nome de suas respectivas mães, filhas ou esposas, todas as mulheres do Brasil e, por que não, alguns perguntam, do mundo. E tascam a demagógica “homenagem” sem nenhum comentário sobre uma questão fundamental: o machismo. Aliás, o próprio discurso já é resultante do machismo, embora elem não se deem conta disso.

Ouvindo todos estes discursos, lembrei-me de uma campanha municipal, no ano de 2008. Já escrevi sobre esse fato, mas não custa relembrá-lo. Sei o nome da cidade e do candidato onde ocorreu, mas não é o caso de aqui identificar, porque isto deve ter ocorrido e ainda ocorre em muitos outros municípios. Escrevi na ocasião:

“Em 2008 estava eu num desses comícios de um candidato a prefeito. O candidato a discursar sobre o seu programa de governo e nada de falar sobre a questão da mulher. Cansada de esperar, a esposa diz baixo, mas o suficiente para todos no palanque ouvirem: “fala da [questão da] mulher”. O discurso continua, e ela insiste: “fala da mulher”.

“Lá pela quarta ou quinta “fala da mulher”, o candidato resolve: “Agora vou falar da mulher, esse ser sagrado, esse ser divino de onde viemos e quero aqui homenagear todas as mulheres, principalmente as duas da minha vida, minha esposa e minha mãe”. E engasgou numa sequência de repetições.

“Insatisfeita, a esposa continuou ao lado: “fale das propostas”. E ele não teve dúvidas: “nós vamos construir vários clubes de mães para ensinar crochê, tricô, costura e a cozinhar”. A esposa, não sei se satisfeita ou porque desistiu, parou de insistir”.

Qualquer homem que tenha um discurso igual ou semelhante ao acima não tem a mínima consciência do que é ser mulher e do que se passa com a mulher. Não tem a mínima consciência do longo processo para superar os problemas que o machismo causa. O homem que tem esse tipo de discurso é o machista que nega esta sua condição.

Segundo o Instituto Sangari, o machismo assassinou ao longo de 30 anos, entre 1980 e 2010, mais de 92 mil mulheres, só no Brasil. Na última década do estudo, foram assassinadas 43,7 mil. Portanto foram assassinadas mais de 4,3 mil mulheres por ano, aproximadamente 12 mulheres por dia, ou seja, uma a cada duas horas.

Chamo a atenção para o fato de que estes números foram obtidos analisando as declarações de óbitos encaminhadas ao Ministério da Saúde, mais precisamente enviadas ao Viva (Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes). Saliento que nem todos os municípios do Brasil comunicam ao Viva as mortes de mulheres por homicídio.

Segundo, se uma mulher for ferida de morte pelo seu companheiro, marido ou namorado, e não morreu imediatamente, vindo a morrer depois de 24 horas, a causa morte já não é contabilizada como homicídio. Portanto, o número de homicídios de mulheres vítimas do machismo é, infelizmente, superior. Lembro também que não estão sendo contabilizadas as mulheres vitimas de violência física, psicológica e sexual.

Em 2006, sob o governo Lula, o Ministério da Saúde começou a implantar o sistema Viva. Segundo dados colhidos pelo Viva em 2012, o Sistema Único de Saúde (SUS) atendeu um total de 18.007 mulheres, uma média de duas mulheres por hora (uma a cada meia hora) vítimas de violência sexual. A maioria, cerca de 75%, das vítimas eram crianças, adolescentes e idosas.

Não são contabilizadas as vítimas da violência sexual que procuram o atendimento médico em consultórios, ambulatórios, hospitais e clínicas privadas. Só entram nessa conta os atendimentos feitos pelo SUS. Tampouco são contadas, obviamente, as mulheres que não procuraram serviços médicos. Portanto, não temos no Brasil o número exato da violência sexual (estupros) contra a mulher.

O número exato de mulheres agredidas sexualmente é desconhecido, mas os agressores, na maioria (cerca de 60%) são conhecidos, estão dentro de casa. São o marido, o pai, o padrasto, o namorado, o amante, o avô.

Tampouco fazem parte da contabilidade de homicídios de mulheres aquelas vítimas do narcotráfico, que muitas vezes também são vítimas do machismo.

Esta tragédia humana é causada pela relação de gênero, na qual o homem se sente superior e olha a mulher como uma coisa, um objeto seu. É também responsável pela tragédia a impunidade. A polícia não investiga, o Ministério Público não atua e os poucos casos que chegam à justiça não são julgados e, se julgados, o machismo da maioria dos juízes e da própria instituição absolve os homicidas.
Dr. Rosinha, médico pediatra, é deputado federal (PT-PR) e presidente da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. No twitter: @DrRosinha

 

 

Fonte: Viomundo 

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