Ausência de autores negros reflete baixa diversidade da TV brasileira e explica polêmicas como “O Sexo e as Negas”
Por: DANIEL OLIVEIRA, no, O Tempo
Há alguns meses, Joel Zito Araújo, como muitos de nós, adicionou um desconhecido no Facebook. Era um norte-americano que havia morado no Brasil e gostava dos posts sobre diversidade racial do cineasta, responsável pelo livro e o documentário “A Negação do Brasil”, maior estudo sobre a representação negra na TV brasileira. Os dois combinaram de se encontrar quando Araújo estivesse nos EUA, o que aconteceu na última quinta-feira, em Los Angeles.
“Para minha surpresa, ele é diretor de um programa da Disney de recrutamento e desenvolvimento de talento entre minorias, como negros, latinos e asiáticos, para assegurar a diversidade de roteiristas, diretores e produtores dentro do estúdio”, conta o cineasta. O choque veio não somente de que o amigo trabalhasse com isso, mas de que em um país em que negros não são mais que 14% da população, essa preocupação exista.
Os resultados de ações afirmativas assim são inegáveis. A roteirista e criadora de séries de maior sucesso nos EUA hoje é a negra Shonda Rhimes. Desde setembro no canal ABC (da Disney), as noites de quinta-feira – em que os anúncios são mais caros e, portanto, é a principal da semana – são dominadas por três seriados produzidos por ela. Dois, “Scandal” e “How to Get Away with Murder”, são protagonizados pelas atrizes negras Kerry Washington e Viola Davis. O outro, “Grey’s Anatomy”, é reconhecido há anos como o elenco mais diverso da TV norte-americana, com atores asiáticos, latinos e negros. “Grey’s” é o drama mais visto nos EUA. “How to Get Away with Murder” é a série estreante de maior audiência do ano. A segunda é a comédia “Black-ish”, sobre uma família negra.
Enquanto isso, a televisão brasileira não possui um único autor de teledramaturgia negro. Muito já foi falado sobre a quase inexistência de protagonistas e atores não-brancos nas novelas, ou a baixa diversidade dos elencos. Mas pouco ainda se discute sobre a raiz desse alvejamento: a ausência de negros roteiristas e diretores, nas posições de real controle criativo dessas produções. “Os negros ainda são mais representados do que falam por si na TV. O que se vê é a história dos negros contada pelos brancos”, afirma o pesquisador e professor de comunicação da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) Wesley Grijó.
O exemplo mais recente disso é a polêmica em torno do seriado “O Sexo e as Negas”, criado por Miguel Falabella. Para Joel Zito Araújo, é até positivo que um homem branco se interesse pelo universo da mulher negra. O problema está bem mais embaixo. “Onde está a preocupação da maior emissora do Brasil em incorporar diretores, autores ou consultores negros numa produção assim? O fato de que nem pensaram nisso é a prova do mal dessa ideia de falsa democracia racial, de que não existe racismo aqui”, critica.
Segundo o cineasta, mesmo a recente minissérie “Subúrbia”, escrita por Paulo Lins (autor de “Cidade de Deus”) é outro sintoma dessa falta de consciência. “O convite foi do diretor Luiz Fernando Carvalho, e não da emissora”, pondera. A pesquisadora Mariza Fernandes dos Santos, que estuda a falta de material acadêmico escrito por negros disponível para estudantes cotistas em seu mestrado no Instituto Federal de Goiás (IFG), também não acha que é obrigatório ser negro para criar personagens negros complexos e multidimensionais. “Mas desde que o homem branco tenha vivenciado uma experiência de alteridade, se abra para o que é de fato ser uma mulher negra da periferia, não o estereótipo. E, ainda assim, não acho que seja desejável, quando temos diversas mulheres negras capacitadas para fazer isso”, argumenta.
Para Wesley Grijó, que expandiu a pesquisa do livro de Joel Zito para novelas dos anos 2000 em um artigo recente, o necessário é buscar uma diversidade maior de discursos e versões. “Quantos por cento da população brasileira são descendentes de italianos? E quantas novelas sobre imigrantes italianos já foram feitas? Por outro lado, como o branco que não sabe o que é preconceito vai falar sobre isso?”, questiona o professor. A autenticidade de alguém falando do seu próprio ponto de vista é inquestionável. Centenas de filmes já foram feitos sobre o escravismo. Quando um foi escrito e dirigido por negros, “12 Anos de Escravidão” foi algo tão único que ganhou o Oscar.
Para os pesquisadores, porém, contar histórias com negros mais autênticas e complexas implica também desassociar os personagens das tramas de racismo, preconceito, criminalidade e atraso social. Olivia Pope e Annalise Keating, protagonistas de “Scandal” e “How to Get Away with Murder”, são mulheres bem-sucedidas, complexas e cheias de problemas, cujo fato de serem negras é apenas uma das várias facetas de suas personalidades. “As novelas hoje têm ‘famílias negras’. Não são famílias ricas, pobres, desajustadas ou felizes. São famílias ‘negras’. É um tipo”, reflete Joel.
Grijó acrescenta outro exemplo com a recente novela “Lado a Lado”. Para ele, apesar de trazer protagonistas e antagonistas negros, “ela era muito didática e não funcionava como folhetim”. Para o professor, um avanço que a produção trouxe, no entanto, foi personagens com nome e sobrenome. “Na minha pesquisa, descobri que negro em novela não é associado a um nome de família. Quem lembra o sobrenome da Helena da Taís Araújo em ‘Viver a Vida’’ O marido dela tinha e o dela nunca foi mencionado”, revela. Já nos EUA, o “Pope” da Olivia de “Scandal” se tornou um verbo/gíria para “resolver problemas difíceis”. Pequenos detalhes que fazem toda a diferença.