E os “brancos” do candomblé’?

A intolerância religiosa, nos últimos vinte anos, aparece como um fenômeno violento que se dirige às religiões africanas em diáspora no Brasil. A questão é que o termo “intolerância religiosa”, embora pareça aglutinador, tem se mostrado insuficiente para nomear a complexidade do sistema opressivo sobre as crenças originalmente negras do país. Digo isso porque acredito que é passada a hora de superar jargões e frases de efeito, já que podemos e devemos olhar para nós e para os fatos com a densidade que merecem. A terceira pessoa do plural refere-se aos religiosos, não só aos pesquisadores e estudantes, mas a todos aqueles interessados em refletir sobre esta prática, principalmente os que são identificados como os ‘brancos do candomblé’.

Por Yasmin Rodrigues, do  Flor de Dendê – Uma aliança afro-sertaneja

Poderia escrever este texto fazendo mea culpa sobre minha posição na hierarquia racial brasileira, e que me mantém longe do genocídio que mata pretos no país. Poderia também me declarar como mestiça (e é esse o argumento utilizado por muitas pessoas brancas que se ofendem nos espaços de discussão acadêmica ou política por serem brancas, não é verdade?), mas seria de grande desonestidade, já que, até hoje, minha cor jamais foi uma questão.

Seria desonesto porque, ainda que eu seja o resultado do processo de branqueamento – política pública em andamento há cerca de 150 anos no Brasil, que fez com que a concentração de melanina tendesse a diminuir das peles brasileiras – jamais saberei o que é discriminação racial. Veja, sou de uma família que há décadas vem branqueando e que reúne, do lado materno, até onde pudemos saber, prevalência negra e indígena e, do lado paterno, uma genealogia bem definida, que remonta várias gerações, até hoje conhecidas e constituídas no norte de Portugal.

Bem simbólico, não é? No entanto, minha avó materna, apesar de negar sua negritude, era vista e apontada como mulher negra. Há quem diga que minha mãe é pouca-tinta, mas eu sou incontestavelmente branca (aos olhos da polícia, principalmente). A questão é que o racismo, enquanto sistema estruturante das relações de poder no nosso país, atua pela marca, de modo que é a cor da pele o que define se a experiência será mais ou menos violenta por aqui.

Privilégios

Neste sentido, é preciso afirmar que componho parte da população que fala por si e não se vê como parte de uma raça. Ao meu ver, assumir este posicionamento ao falar sobre os ‘brancos do candomblé’ é o nosso maior desafio. Certamente, é possível fazer com que pessoas visivelmente brancas se reconheçam dessa forma e consigam expressar-se declaradamente a partir de sua posição de poder e privilégios. Entendo que só assim conseguiríamos deslocar o problema da dinâmica racial, considerando a posição privilegiada que ocupo neste cenário. Bem, não tenho certeza se estou apta a fazer esta provocação, no entanto, posso falar sobre meus pares e consigo compreender e acessar nuances da performance social de pessoas brancas, entre as quais, candomblecistas.

É fato que para alguns movimentos que discutem e demandam sobre os direitos dos negros e negras, embora não seja uma posição hegemônica desses movimentos e das disputas políticas que envolvem religiosidade, “brancos no candomblé são abomináveis” e “Não deveriam existir”. Esse é um discurso facilmente encontrado, principalmente nas redes sociais, espaço onde a doutrina religiosa não funciona ou não garante que a interação se dê sob as premissas estabelecidas nos terreiros.

Por outro lado, há diversos, ‘mais velhos’ e ‘mais novos’ que são socialmente identificados como ‘brancos do candomblé’. Alguns desses se destacam por serem assíduos defensores da religião (enquanto sistema de crença tradicional) e seus pares religiosos (enquanto pessoas) de ataques discriminatórios nas ruas, nas redes sociais e até dentro de suas famílias.

O fato é que, a partir do movimento de ataque do setor neopentecostal e de defesa do setor afrorreligioso, surgiram diversos grupos contra a intolerância religiosa e a favor dos direitos dos religiosos de matriz africana. Na esteira dessas disputas, militantes negros, em maioria, passaram a classificar a violência direcionada aos cultos afro como ‘racismo religioso’ no intuito de demarcar a origem da discriminação no racismo antinegro, indicando que as religiões sofrem represália por serem originalmente negras. Pois bem, o que venho tentando refletir e fico me perguntando: mesmo se tratando de “racismo religioso”, não é possível que estejamos escamoteando a noção de corpo? De quem é o corpo que sofre ‘racismo religioso’?

É aí que os ‘brancos do candomblé’ entram, levantando a mão junto com os negros e batendo o pé em dizer que é o corpo do ‘macumbeiro’ que sofre. Tenho cá minhas dúvidas. Penso que o ‘xis’ desta questão está em algo que para o Povo do Santo é simples: no candomblé, nossa noção de corpo se estende também às nossas insígnias sagradas.

Junção

Desse modo, a roupa de ração, os fios-de-conta, o contregun e todos os demais paramentos que indicam a qual religião pertencemos, são também sagrados e partes indissociáveis do nosso corpo – esses objetos se alimentam conosco, representam a nossa ligação direta com o Orixá e nascem conosco quando renascemos. No entanto, no momento da discriminação, são eles, os artefatos, e não o nosso corpo humano branco, os alvos da discriminação.

Vou dar um exemplo: às sextas, quando me visto de branco e coloco meu fio-de-conta no pescoço, é normal que o lugar ao meu lado no ônibus demore um pouco mais a ser ocupado do que nos outros dias. O fio-de-conta e a roupa branca – insígnias negras! -, causam medo. Mas eu posso tirá-los e aí, a sociedade me vê como inofensiva. No entanto, já há pesquisas no sentido de que pessoas negras (principalmente homens) costumam ficar sozinhas ou são a última escolha para dividir a viagem no transporte público. Nesse caso, como no primeiro, o que é negro causa medo, repulsa. Só que para quem é negro não há alternativa: não há como se despir de sua própria pele…

É por este motivo que quando penso na discussão sobre os ataques dos neopentecostais aos terreiros país à fora, não acho honesto que nós, ‘brancos de candomblé’, entremos à reboque em uma leitura séria sobre racismo de origem por causa da escolha religiosa que nos atravessa. A origem dos brancos, numa análise sobre as interações, não é africana, muito menos melanodérmica (e ancestralidade e mestiçagem não são questões colocadas aqui.

Trata-se do efeito que seu corpo causa em outro corpo quando se vêem e como o outro te enxerga. E, vamos combinar?, este ‘outro’ generalizado não enxerga o branco como originalmente perigoso).  E o racismo é antinegro. Antinegro. Pessoas brancas não sofrem racismo de qualquer tipo, sequer o religioso. E isso não é negar trajetórias brancas marcadas pela violência religiosa, mas admitir que esses corpos que nascem blindados, em algum momento, vestiram-se de vulnerabilidade quando colocaram sobre si símbolos tipicamente negros.

Os fios-de-conta, as roupas, o pano de cabeça são negros, são geneticamente (no sentido da gênese) negros. E não faz mal olhá-los assim, já que são vivos. Porém, penso que a reivindicação desleixada, feita por ‘brancos do candomblé’, por uma opressão que habita vidas brancas que acontece esporadicamente nos momentos de preceito religioso, tem feito muito mal ao enfrentamento da violência religiosa que todos estamos sofrendo.

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