É preciso reformar o pensamento sobre racismo

A crise econômica acende um alerta para o racismo, porque esta mazela tão enraizada em nosso País não é uma questão cultural, mas sim uma relação social na qual, historicamente, os negros trabalham para perpetuar a desigualdade, um pilar do funcionamento do capitalismo. Também é um elemento estruturador do sistema, que tem como objetivo o lucro e, por consequência, concentração de riqueza e a desigualdade como condições para o funcionamento das instituições do poder.

Por Leonardo Lucena Do Brasil247

Foto: Reprodução/Brasil247

Outra gravidade é o atrofiamento da consciência dos negros. Como a maioria da população pobre no País é negra, as pessoas deste segmento racial se veem rodeadas de gente com a mesma cor da pele, e não sentem o racismo que sofreriam em lugares ocupados por maioria branca. A segregação social também “dopa”, amortece o senso crítico dos negros.

O jurista e filósofo Silvio Luiz de Almeida levantou uma questão importante durante a conferência Estado, Direito e Análise Materialista do Racismo, em Florianópolis (SC), no ano passado (o autor deste texto assistiu ao discurso via Youtube). Ao citar Etienne Ballibar, o estudioso diz não existir racismo sem a “mão” do Estado, o que é perceptível nas abordagens policiais. E vale ressaltar, por exemplo, que, além de a negritude sofrer bem mais os impactos da violência, seja de civis ou de militares, a maneira como o sistema funciona põe negros contra negros, que veem as localidades onde moram como a “culpa” das mazelas sociais, e não como um elemento estruturador da disparidade social.

Outra observação importante sobre o racismo é que, em várias ocasiões, o homem não se “protege” apenas com a segurança pública, mas também com o preconceito. Ao encontrar um negro pobre na rua, o branco tenta mudar de caminho por medo de sofrer violência (roubo, assalto, latrocínio). Lamentavelmente, dependendo da ocasião, o preconceito substitui o governo na proteção ao indivíduo e as classes sociais são alimentadas pelas mais variadas ilusões de conceitos como liberdade e igualdade, muito ligados ao consumo na contemporaneidade. Seguem apenas sob os olhares do governo, condutor da desigualdade junto com o mercado.

Citando outro estudioso, Immanuel Wallerstein, o filósofo chama a atenção para o fato de que a meritocracia é um discurso para destruir a consciência dos negros. Ameniza a responsabilidade do governo em prover a população de direito humanos básicos. A elite conservadora enxerga a defesa de políticas públicas voltadas para segmentos específicos como pensamento de preguiçoso. Mas o preguiçoso, mesmo usufruindo dos direitos sociais básicos, terá pouca expectativa de vida profissional, teoricamente. E se o político for preguiçoso? Nada acontece. O projeto de poder prevalece sobre o de Estado e a política institucional, feita de cima para baixo (autofinanciamento de campanha, corte de raça nas instituições, e etc.), ainda é um entrave para a participação popular.

“Seleção das espécies”

Por muito tempo o conceito de “raça” foi usado como justificativa para o “darwinismo social”, uma “seleção” natural dos homens com melhor adaptação às mudanças na sociedade e à relação homem-natureza. Os negros estariam em posição de subalternidade na comparação com os brancos porque não conseguiram se adaptar ao ambiente social. Inclusive, o documentário “Origens da Escravidão”, da BBC, mostra que no século XX cérebros de africanos eram levados à Europa para pesquisa com a finalidade de se provar a existência de cérebros “inferiores”, supostamente menos evoluídos do que os dos europeus.

No século XIX, o antropólogo Francis Galton (1822-1911) criou uma teoria chamada Eugenia, que seria a genética aplicada à seletividade de homens e mulheres. O objetivo era aumentar a reprodução nas classes alta e média, diminuir nas camadas pobres, e fazer prevalecer a falsa ideia de “superioridade” de raça – que, no Brasil, não acabaria com a Lei Áurea em 1888, claro.

No período colonial (1500-1822), os negros não eram apenas uma mão de obra, mas também uma mercadoria – e muito lucrativa. Na Era Imperial (1822-1889) foi aprovada a Lei de Terras, em 1853, que determinava a posse da terra apenas por meio de compra, prejudicando ainda mais os negros e privando eles de qualquer expectativa de vida. A Lei Áurea teve seu efeito positivo, porque a formalização de uma lei antiescravidão é fundamental para que este malogro do capitalismo tenha a devida atenção do governo e do povo para não ocorrer. Mas, infelizmente, o sistema tenta deixar intacta a correlação de forças entre brancos e negros, o que é nítido no “corte” racial dentro das instituições políticas e empresariais. A segregação é o “interior” da sociedade, o que é deplorável e muito visível, por exemplo, em lugares ocupados majoritariamente por brancos, como shoppings, restaurantes caros, escolas particulares, e etc., e outros por negros, como favelas e presídios.

Pós-1888, a negritude estaria “livre” para ser absorvida pelas novas exigências do mercado, com a exploração e o descumprimento de direitos trabalhistas fazendo parte dos mais diversos tipos de trabalho.

Seja no Brasil ou fora do país os negros até conseguem a liberdade “oficial”, mas não a liberdade prática, naturalmente. A revolução dos escravos, no Haiti (1791-1804), por exemplo, é simbólica na luta contra a escravidão, porque teve como desfecho uma constituição proibindo o escravismo, em 1805, o que poderia fazer enorme diferença na estrutura socioeconômica do seu povo. Mas o País teve de pagar indenizações aos franceses, medida que ajudaria muito a destruir o sonho de uma nação mais próspera e justa.

Habitua-se a ver o racismo como um problema cultural e não como uma relação social. Como consequência, para muitos a meritocracia é a alternativa somada à Constituição Federal, porque bastou limitar o poder do governo por lei, não o deixando ser tirânico, que já se efetiva o “contrato social” entre o povo e as instituições do poder, uma verdadeira ilusão, claro. Vários cidadãos ainda veem no “todos são iguais perante a lei” a válvula de escape para a defensa da “seleção natural da espécie” na sociedade. Mérito próprio, darwinismo social e legislação não podem ser a fórmula para a prosperidade, no sentido mais amplo da palavra. A lei é necessária, mas é apenas parte de avanços em uma “democracia”, ainda com suas muitas imperfeições.

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