‘É uma cicatriz que incomoda’, diz docente alvo de racismo na Unesp

(…) depoimento a
ESTÊVÃO BERTONI

Da Folha de S.Paulo 

Professor do curso de jornalismo da Unesp de Bauru (a 329 km de SP) e militante do movimento negro, Juarez Tadeu de Paula Xavier, 55, foi um dos alvos das ofensas racistas escritas num banheiro masculino da universidade. As inscrições diziam: “Unesp cheia de macacos fedidos”, “Juarez macaco” e “Negras fedem”. A instituição investiga a ação e lançará campanha em sua rádio contra a discriminação racial. A seguir, o depoimento dele à Folha:

Sou militante do movimento negro, por isso não me coloco como vítima. Nos espaços políticos, sempre enfrentei a questão racial, mas é a primeira vez que vejo “Juarez macaco” escrito na parede.

Duas coisas me marcaram nesse episódio: a reação da minha filha e de uma faxineira da Unesp, uma mulher negra que teve de limpar as pichações. É triste ver uma senhora numa condição subalterna limpando uma ofensa feita a ela num banheiro.

Ela ficou revoltada, com os olhos marejados. Isso me tocou mais do que as ofensas, porque não é uma questão pessoal. Não é o Juarez.

Tenho uma filha de 16 anos que ficou sabendo do caso pelas redes sociais. O nome dela é Bolají [pronuncia-se “Boladi”], porque ela é iniciada numa tradição africana, iorubá. Seu nome significa “aquela que nasceu com honra”.

Não gostaria que ela tivesse entrado em contato com isso pelas redes sociais, mas ela está de férias em São Paulo. Ela fez uma postagem com uma certa revolta, achando um absurdo. Você reage, mas é uma cicatriz que fica ali coçando, que incomoda. No comentário dela percebi isso.

Ela é uma menina muito corajosa. Falou comigo me confortando. “Pai, fica tranquilo, é assim mesmo.” Que coisa maluca quando o pai fica na condição de filho. Ela volta hoje [segunda, 27] e vou sentar com ela e conversar. Ela tem tido esses enfrentamentos na escola por causa do nome, do cabelo black, e não é exclusivamente dela. Na escola, é cruel. Lembro ainda dessas manifestações. É muito difícil.

Juarez Xavier, professor da Unesp de Bauru, que foi alvo de ofensas racistas escritas num banheiro da universidade Foto: Cristiano Zanardi/Folhapress
Juarez Xavier, professor da Unesp de Bauru, que foi alvo de ofensas racistas escritas num banheiro da universidade
Foto: Cristiano Zanardi/Folhapress

Nós temos uma preocupação grande em prepará-la para isso, coisa que eu e minha mulher não tivemos. Ela tem sido educada para compreender esses fenômenos.

Nasci na Vila Mazzei, na zona norte de São Paulo, onde comecei a trabalhar aos oito anos numa banca de jornal. O dono exigia que a gente lesse. Me lembro de ter visto uma reportagem sobre os Black Panthers [Panteras Negras] na revista “Realidade”.

Trabalhar em banca foi um dos motivos para ter escolhido o jornalismo. Depois, fiz o cursinho da Poli. Muitos professores eram engajados. Foi natural escolher uma profissão que tivesse esse debate.

Minha mãe foi empregada doméstica a vida inteira. No meu registro só tem o nome dela, mas conheci meu pai, que ficou muito tempo preso e depois foi assassinado. Tenho um irmão que se aposentou na indústria têxtil. Hoje, ele trabalha como vigilante.

Trabalhei em fábrica como ajudante geral e, na época em que entrei na PUC, tinha começado como agente administrativo no INSS. Fui eleito presidente do DCE (Diretório Central dos Estudantes) e depois fui para a UEE (União Estadual dos Estudantes).

Fiz mestrado e doutorado na USP, atuei com assessoria política e sindical e, em 2000, comecei a dar aulas. Estou há quatro anos na Unesp. Tive, nesse período, cerca de dez alunos negros e, coincidentemente, quase todos foram orientados por mim.

Após a pichação, a gente decidiu realizar uma ação administrativa e pedagógica e outra legal. Na primeira, foi montada uma comissão para poder fazer uma apuração e um debate.

Do ponto de vista legal, o objetivo é fazer um boletim de ocorrência. Vai ser difícil descobrir o autor, mas queremos que ele compreenda que cometeu um crime e portanto vai passar por um processo de averiguação e punição.

Em Araraquara, quando aconteceu isso há dois anos, não se achou o responsável. Mas o que eu achei positivo: obrigou a universidade a fazer o debate.

No ano passado, aconteceu algo parecido em Harvard [Universidade Harvard, nos EUA]. E aí houve uma série de conflitos e fizeram uma campanha: “Eu também sou Harvard”. Nosso projeto é aproveitar esse momento para ampliar o debate.

A nossa universidade reserva 25% das vagas para alunos negros, pardos e indígenas de escolas públicas. A tendência é que tenhamos cada vez mais alunos negros. Você recruta, mas não cria as condições para esse aluno ser bem recebido.

Se a universidade não se preparar para esse acolhimento, a gente vai ter diversas manifestações dessa natureza. A nossa ideia é se antecipar a isso.

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