“É você quem vai me atender?”: médicas negras relatam racismo no trabalho

“Entra uma mulher branca no consultório, me mede de cima a baixo procurando o que está escrito no meu jaleco e pergunta com desdém: você que é a médica?”: o desabafo feito por Kleriene Souza, que é formada em medicina há seis meses, viralizou no Twitter. Ela, que realiza os atendimentos desde a época da residência, acumula experiências negativas causadas pelo racismo — tanto por parte de colegas de trabalho, quanto de pacientes.

Não há dados recentes sobre a porcentagem de profissionais negros atuando como médicos no Brasil. No entanto, segundo levantamento da UFRJ, em 2010, menos de 18% dos médicos que atuavam como funcionários públicos eram pretos ou pardos.

Já quando o assunto é estudo, com o apoio de políticas públicas, como a Lei de Cotas, o número de estudantes pretos e pardos em universidades públicas chegou a 50,3% em 2018. Porém, no curso de medicina, de acordo com o estudo Demografia Médica, da USP, a porcentagem de concluintes negros que realizaram o Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) ainda era de 27,7% em 2020.

Na prática, não são raras as histórias de apenas um ou dois alunos negros que se formam em medicina ao lado de uma centena de brancos. Sem a representatividade necessária no meio acadêmico e na vida profissional, o racismo segue sendo parte da história daqueles que ingressam neste campo. A seguir, Universa reuniu relatos de médicas negras — e suas esperanças para o futuro:

“Fui barrada na entrada dos hospitais onde trabalhei”

Kleriene já foi barrada na porta do locais onde trabalhou
Imagem: Acervo pessoal

Kleriene Souza, autora da frase que abre a matéria, tem 29 anos e mora em São Bernardo do Campo (SP). Ela cursou medicina em Cuiabá (MT) e retornou à cidade natal para fazer uma especialização. À reportagem, ela relembra que desenvolveu transtorno de pânico graças a recorrentes episódios de racismo. Um deles, mais significativo, aconteceu durante um estágio.

“Eu estava com outras pessoas da turma, entrando no hospital. Todos diziam o nome da professora a quem vieram acompanhar e em seguida eram liberados. Na minha vez, fiz o mesmo e fui barrada. O segurança chegou a gritar comigo”, relembra.

Infelizmente, a situação se repetiu. “Já tive que deixar diversas malas no chão e procurar minha credencial enquanto assistia outra médica, branca, dizer que estava com pressa e ser liberada”, conta. Com isso, adquiriu uma sensação constante de insegurança. “Chego a ficar aliviada quando entro no consultório, principalmente quando inicio em um local de trabalho novo”.

Porém, quando questionada sobre o futuro, suas projeções são otimistas. “Minha esperança é de que, a cada dia mais, as pessoas não se assustem. Pelo contrário, fiquem felizes como alguns pacientes já ficaram, por reconhecer na médica que estava realizando o atendimento uma filha, uma neta, um vizinho”, conclui.

“Na faculdade, nossa capacidade é colocada à prova”

Kleriene já foi barrada na porta do locais onde trabalhou
Imagem: Acervo pessoal

Mariana Lemos Prado tem 29 anos e mora em São Paulo. Ela se formou em 2017 e atua como ginecologista e obstetra. Nas suas experiências, o racismo esteve mais presente com colegas de trabalho do que com os pacientes.

“O mais comum é me confundirem com outros profissionais de saúde, que não são médicos”, conta. Porém, no período da faculdade, sentia o preconceito mais intensamente.

“É algo muito velado, mas existe uma cobrança exacerbada, como se tirassem de você o benefício da dúvida. A impressão é de que, se você erra, é sempre mais pontuado e julgado. Naturalmente, a atmosfera traz uma cobrança extra para mostrarmos nosso potencial”, comenta.

Na turma na qual se formou, havia quatro pessoas negras para 400 alunos. “Justamente por isso sou do time das políticas públicas. Se conseguirmos votar com consciência racial e de classe, o mais provável é que a medicina se torne cada dia mais plural”, opina.

“No vestiário, me perguntaram quem era a paciente que eu estava acompanhando”

Na turma de Fernanda na faculdade havia apenas 3 alunos negros
Imagem: Acervo pessoal

Fernanda Bertoldo tem 30 anos, é formada em medicina há cinco e também atua como ginecologista e obstetra. Ela, que mora no Rio de Janeiro, avalia que o início da sua carreira foi o período mais desafiador. “Assumi o lugar de um médico em um posto de saúde e, com isso, os pacientes que antes eram atendidos por ele, vieram para mim”, conta.

As reações ao se depararem com a nova médica eram semelhantes. “Foi difícil a aceitação. Muitos se referiam ao enfermeiro que fazia parte da equipe, como doutor. Então, quando me viam, questionavam se era eu mesma quem iria realizar o atendimento, se estavam no lugar certo”, relembra.

Um dos episódios mais marcantes, no entanto, veio dos seus colegas de equipe. “Era um horário de troca de turno, por isso o vestiário feminino estava cheio. Eu entrei para ir ao banheiro, vi que todas pararam de falar e ficaram olhando para mim. Quando saí, uma delas me perguntou quem era a paciente que eu estava acompanhando”, conta.

Quando respondeu que era médica residente, a colega ficou sem graça e disse que a pergunta não tinha a ver com sua cor de pele, pois “tem parentes negros”.

Como as demais entrevistadas da matéria, no entanto, a projeção de Fernanda para o futuro é otimista. “O número de médicos negros sobe lentamente, mas está aumentando. Creio que temos grandes chances de ocupar cada vez mais espaços de poder”, finaliza.

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