Eduardo Cunha, quem é a mulher mentirosa? Por Debora Diniz

Se há abuso, não é das mulheres, e sim do Estado. E não são bem mulheres, mas meninas e adolescentes, provavelmente vítima de abuso intrafamiliar. Metade delas desaparece dos serviços logo após a chegada, pois não suporta a sobreposição entre hospital e delegacia

Por Debora Diniz Do GGN

Eduardo Cunha disse que as mulheres são abusadoras quando a questão é aborto. Elas mentem descaradamente, diagnosticou o presidente da Câmara dos Deputados: sem medo da polícia, atravessam portas de hospitais, inventam histórias descabidas de estupro e pedem o direito ao aborto legal. Verdadeiras atrizes são essas mulheres que vivem o sexo fácil e despreocupado e, quando engravidam, abusam do Estado solicitando um aborto legal e seguro. Para nos proteger das mulheres mentirosas, o deputado propôs um projeto de lei que coíbe o abuso das mulheres: elas precisarão ir a uma delegacia, submeter-se a exame de corpo de delito, peregrinar por autorizações e testes de verdade antes de ter acesso ao aborto legal.

Vou usar título importante para a autoridade do que digo — sou cientista, adoro argumentos com evidências de pesquisa. Como sabe o deputado Cunha que as mulheres abusam dos provedores de serviços de saúde? Há estudos que provem tão grave acusação? Como desconheço evidências para essa terrível tese sobre mulheres vítimas de violência, apresento o que sabemos sobre o que se passa nos serviços de saúde no Brasil. Se há abuso, não é das mulheres, e sim do Estado. Mas, antes de apresentar as evidências do abuso, peço licença para qualificar nossa conversa sobre quem são as mulheres mentirosas; dirijo-me, num só parágrafo, a quem nos persegue.

Senhor deputado, não são bem mulheres, mas meninas e adolescentes: 36% das que fizeram aborto legal no Brasil têm menos de 19 anos e foram vítimas de estupro. Peço desculpas por ser porta-voz de tamanha desgraça da violência cometida pelos homens, mas algumas dessas vítimas são tão miúdas que não chegaram à primeira década da vida — algumas delas tinham menos de 10 anos quando abortaram. É preciso imaginar essa menina no desamparo da vida, na sobrevivência solitária na casa violentadora, transbordando o segredo inominável da violência sexual — se ela chega ao hospital, é porque antes atravessou barreiras indescritíveis para que se mantivesse escondida. Não consigo imaginá-la como a atriz leviana e perversa que enganaria os provedores de serviços de saúde, tal como alardeado pelo senhor, caro deputado.

Mas por que mais barreiras às mulheres? A política pública brasileira exige dois critérios para o acesso ao serviço de aborto legal em caso de violência sexual: a palavra da mulher de que a gravidez foi resultado de um estupro e o tempo de gestação, que não deve ultrapassar vinte semanas. Recente estudo censitário nacional, financiado pelo governo federal, mostrou uma sequência de equívocos na garantia desse direito: nem todas as capitais possuem serviços de referência e, entre os serviços ativos, nem todos respeitam a política pública. Em 8%, exige-se alvará judicial; em 8%, despacho do Ministério Público; em 8%, laudo do Instituto de Medicina Legal; em 11%, parecer de comitê de ética hospitalar; e, em 14%, boletim de ocorrência. São barreiras indevidas, e com razões desconhecidas: pode ser ignorância das regras da política ou, o mais provável,  uma estratégia para intimidar as mulheres.

É preciso novamente qualificar essa conversa, lembrando agora a personagem perseguida pelo projeto de lei 5.069/2013. Ela é uma menina ou adolescente, provavelmente vítima de abuso intrafamiliar. É uma jovem mulher que sofreu uma violência brutal, e que se apresenta com rosto e biografia em um serviço de aborto legal. Ela chega ali em busca de amparo: espera dos jalecos brancos que cuidem de seu medo, acalmem sua dor, e respeitem seus direitos. Metade delas desaparece dos serviços logo após a chegada, pois não suporta a sobreposição entre hospital e delegacia. Não há meninas mentirosas nem mulheres abusadoras, mas sim um Estado que ignora que o aborto é uma necessidade de saúde — garanti-lo com atendimento digno e sem discriminação é um gesto de respeito à vida das meninas e mulheres.

Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga a página do Facebook.

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