Movimento feminista: Ela fica linda quando está com raiva

O documentário “She’s Beautiful When She’s Angry” revela algumas das dificuldades e contradições do movimento feminista

por Joanna Burigo, da Carta Capital 

She’s Beautiful When She’s Angry (“Ela fica linda quando está com raiva”, em tradução livre) é um documentário de 2014 que resgata a história do movimento feminista dos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970.

Dirigido por Mary Dore e estrelado por figuras fundamentais da construção da episteme feminista moderna, como Kate Millet – autora do clássico Política Sexual – e Eleanor Holmes Norton, primeira mulher a presidir o Comitê de Igualdade de Oportunidades de Emprego nos EUA, o filme está atualmente disponível na Netflix.

O documentário é balizado por manifestações recentes sobre direitos reprodutivos que se deram em Austin, no Texas, e apesar de situado em um contexto geográfico e histórico específico, é possível encontrar semelhanças entre o desenvolvimento da “segunda onda” do feminismo estadunidense e a recente expansão do movimento no Brasil.

As primeiras imagens do filme mostram faixas e cartazes de protesto contendo frases de efeito semelhantes às que nos acostumamos a ver pelas ruas do País nos últimos anos: “respeita as mina”, “meu corpo, minhas regras”, e a indefectível sugestão de que se homens engravidassem, contraceptivos seriam distribuídos gratuitamente e o aborto já teria sido descriminalizado.

Do palanque do evento vem a constatação: os argumentos feministas são antigos e já há muito lutamos pelas mesmas coisas. O que segue é uma pergunta um tanto retórica: “Deveríamos estar furiosas… vocês estão furiosas?”.

(Estamos. Estamos furiosas porque faz tempo que lutamos por direitos muito básicos. Se já conquistamos alguns – como o sufrágio e acesso a educação, exemplos do quão basilares nossas demandas podem ser – foi com muito sangue, suor, lágrimas, textões e hashtags. Estamos furiosas porque sabemos que nada garante a manutenção dos direitos que já conquistamos. E estamos furiosas por ainda não termos conquistado, ao menos não no Brasil, o direito pleno à autonomia e controle total sobre nossos corpos. Estamos furiosas, e é irrelevante se ficamos ou não bonitas quando demonstramos nossa raiva.)

O título do documentário é indicativo das tensões que circundam o debate feminista. Enquanto o filme oferece boas reflexões acerca do movimento, ele não o simplifica.

Declarar que uma mulher fica bonita quando expressa raiva alimenta ao menos duas interpretações contraditórias: a primeira corrobora com o vício social de associar mulheres e beleza, e a segunda festeja a beleza como combustível para a luta.

As duas interpretações são válidas: o feminismo, ao mesmo tempo, batalha pela desconstrução de feminilidades estéticas que dependem de um modelo hegemônico de beleza, e celebra belezas não hegemônicas em um projeto de empoderamento que visa fortalecer a autoestima das mulheres.

Incongruências como estas deixam muita gente confusa a respeito do feminismo. No entanto, um dos aspectos mais fascinantes do movimento é precisamente sua capacidade para não apenas entreter pensamentos conflitantes, mas progredir a partir deles. E isto o filme captura bem.

A diversidade de pensamento, embora muitas vezes difícil de digerir, é parte intrínseca do movimento feminista, e o formato do filme reflete esta característica: ao invés de focar em uma pauta específica, a diretora escolheu mostrar a pluralidade de vozes que compuseram o Women’s Lib.

Esta variedade de posições, imagino, foi o que a levou a não ancorar o filme em nenhuma voz em particular. Dore apresenta, com gosto, as nuances e a multiplicidade de pontos de vista de suas entrevistadas, pois parece saber que embora existam divergências entre correntes, qualquer pauta feminista é decisivamente destinada a promover equidade de gênero.

O documentário evidencia um padrão global e histórico do movimento: entre vertentes feministas existem coalizões de sobra – mas também não faltam colisões.

Dos muitos atritos entre grupos dissidentes, o que mais chamou atenção foi a revelação de que Betty Friedan (autora de A Mística Feminina, considerado um dos livros mais importantes do século XX) não queria abordar pautas lésbicas para que o movimento não perdesse o foco.

Por isso, talvez, o filme nem sempre explicite as correntes a que pertencem suas entrevistadas. Passado o tempo, quem sabe as divergências não importem tanto, e mais vale apreciarmos estas mulheres e as formas como elas mudaram o mundo.

Virginia Whitehill – ativista conhecida por apresentar argumentos perante o Supremo Tribunal dos EUA durante o processo judicial que confirmou a legalidade do aborto nos EUA – abre a série de entrevistas refletindo que não é possível se aposentar do movimento feminista, pois é necessário continuar prestando atenção no poder, que ainda é patriarcal e sempre encontra maneiras de puxar nosso tapete.

Outras entrevistadas são as autoras do livro Our Bodies, Ourselves, best-seller global sobre a saúde da mulher (ainda sem tradução no Brasil) e obra coletiva surgida a partir do trabalho de estudantes que compilaram informações – sobre menstruação, ciclos hormonais, orgasmo e aborto, por exemplo – que, na época, simplesmente não estavam disponíveis.

Também presentes estão as veteranas da Jane Collective (serviço clandestino de aborto baseado em Chicago), que revelam suas táticas para ajudar mulheres em necessidade. E o documentário não deixa de apontar para as lutas específicas das mulheres negras, que, além da exploração patriarcal, sempre tiveram que lidar com questões de discriminação racial.

Não obstante a pluralidade vocal do filme, ele toca em questões-chave: normas hegemônicas de feminilidades dóceis e domésticas foram questionadas por feministas; se oassédio sexual hoje em dia é levado a sério e considerado crime, isso foi por causa dessas mulheres; acusações de estupro, embora ainda lamentavelmente varridas para debaixo do tapete, têm mais crédito hoje por causa do trabalho feminista; nos EUA a prática do aborto é legal, e esta também foi uma conquista das feministas de lá (e se um dia isso mudar por aqui, é certo que feministas terão feito parte do processo).

She’s Beautiful When She’s Angry é um documentário delicioso para quem quer começar a conhecer o feminismo, e convida espectadoras não familiarizadas a saber sobre a luta e as conquistas das mulheres que fizeram a chamada “segunda onda” do movimento.

Mas ele também é um filme revigorante para quem já é feminista – e a edição, que combina imagens antigas e atuais de entrevistas, teatro de rua, protestos e discursos políticos, parece ter sido feita para salientar o valor de conhecermos a história e o trabalho de nossas precursoras.

+ sobre o tema

Pessoas trans relatam barreiras no acesso a serviços de saúde

Yago Tavares Franco, 36, um homem trans, consultou-se com...

Milhares já confirmam presença no ato “Mulheres contra Bolsonaro” em São Paulo

Manifestação, que deve acontecer no Largo da Batata (SP)...

Exposição Fotográfica, de 22 De Novembro a 17 De Dezembro de 2011, no saguão do Paço Municipal (Rede Fácil)

Enviado para Portal Geledés EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA, DE 22 DE NOVEMBRO...

Projeto Meninas Black Power incentiva beleza natural das mulheres negras

Os encontros do grupo acontecem no Rio de Janeiro....

para lembrar

Meu corpo, minhas marcas, minha história

Cicatrizes. 23 anos. 30 janeiro de 2010. Neste dia...

Direito ao voto feminino no Brasil completa 92 anos

As mulheres são atualmente 52% do eleitorado brasileiro, segundo...

5 trabalhos tradicionalmente masculinos nos quais as mulheres foram pioneiras

Hoje as mulheres representam quase a metade da força...

Senado aprova PEC que torna estupro crime imprescritível

O projeto de emenda constitucional que torna imprescritível o...
spot_imgspot_img

Pesquisa revela como racismo e transfobia afetam população trans negra

Uma pesquisa inovadora do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans), intitulada "Travestilidades Negras", lança, nesta sexta-feira, 7/2, luz sobre as...

Aos 90 anos, Lélia Gonzalez se mantém viva enquanto militante e intelectual

Ainda me lembro do dia em que vi Lélia Gonzalez pela primeira vez. Foi em 1988, na sede do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), órgão...

Legado de Lélia Gonzalez é tema de debates e mostra no CCBB-RJ

A atriz Zezé Motta nunca mais se esqueceu da primeira frase da filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez, na aula inaugural de um curso sobre...
-+=