‘Ela Quer Tudo’, de Spike Lee, é uma série sobre a sexualidade feminina negra. Mas só na teoria

Não precisamos gostar de toda arte negra.

Por Zeba Blay, do HuffPost US

A série Ela Quer Tudo me deixou com raiva – uma reação que eu não esperava, mas que acabou me entusiasmando.

Em 1986, quando Spike Lee estreou na direção com o longa She’s Gotta Have It, o conceito de uma mulher negra saindo com três homens ao mesmo tempo era bastante ousado. A novidade do conceito, por mais empoderador que ele fosse, se dilui aos poucos na série de mesmo nome lançada em 2017 na Netflix, que é baseada no filme.

Reprodução/She’s Gotta Have It
Reprodução/She’s Gotta Have It

Existe uma tendência de louvar a arte negra por ser negra. A maioria dos negros pode se identificar com a famosa frase que a atriz americana Issa Rae disse no tapete vermelho do Emmy: “Estou torcendo por todos os negros“. No passado, representações autênticas de pessoas negras criadas por pessoas negras tinham de ser excepcionais para receber algum elogio na indústria da TV e do cinema. Às vezes, qualquer forma de representação é sentida como uma vitória, e qualquer crítica a ela parece uma traição. Mas talvez este seja um bom momento para refletirmos um pouco sobre como elogiamos e como criticamos a arte negra.

Porque, apesar de toda a sua gloriosa negritude e todas as suas boas intenções, Ela Quer Tudo não é necessariamente uma boa série. E tudo bem que não seja.

Nessa nova versão, filmada no bairro de Fort Greene, no Brooklyn, Nola Darling é uma millennial negra com N maiúsculo, orgulhosa de suas origens, e a série vai te lembrar disso sempre que tiver oportunidade.

“Sou pró-sexo, poliamorosa e pansexual”, nos conta Nola sentada em sua cama icônica, a Loving Bed, o único lugar onde ela faz sexo com seus parceiros rotativos. “Eu me considero anormal. Mas quem quer ser como todos os demais?”

Esta é uma série sobre a sexualidade feminina negra, mas apenas nominalmente. Na verdade, tem pouco a dizer sobre a sexualidade feminina negra, e menos ainda sobre pessoas que não seguem o modelo heterossexual nem o binarismo de gênero. Nola não é tanto uma artista negra feminista de 20 e poucos anos, pró-sexo, poliamorosa e pansexual que vive no Brooklyn; é mais a ideia de uma mulher assim. Nesse sentido, Ela Quer Tudo é um intenso exercício de suspensão de descrença. Precisamos acreditar, por exemplo, que Nola Darling desfruta da companhia de qualquer dos caras estranhos que ela namora (com a exceção, talvez, de Mars Blackmon).

E precisamos acreditar que a arte de Nola, embora perfeitamente boa, é tão incendiária e inovadora quanto é apresentada no mundo da série. (O melhor do trabalho dela vem na forma da campanha de rua #MyNameIsnt [Meu Nome Não É], baseada no projeto Stop Telling Women To Smile [pare de dizer para as mulheres sorrirem], lançado por Tatyana Fazlalizadeh, em 2012.

Nola – e, de fato, todos ao seu redor – fala por meio de hashtags, se veste como uma afropunk e faz constantes referências à cultura pop e a filmes que deveriam parecer sofisticadas e refinadas, mas que acabam sendo aleatórias e supérfluas. (Em dois momentos da série, ela repreende os amantes por nunca terem ouvido falar dos filmes Laços de Ternura e Coisas Belas e Sujas, que não são nada desconhecidos).

Mas Nola, interpretada pela efervescente e extraordinária DeWanda Wise, tem muito coração e uma bondade genuína, o que compensa sua caracterização numa série que às vezes parece ter vindo de um mundo e uma época onde negras jovens e independentes, na verdade, não estão vivendo. Nola se declara orgulhosamente pró-sexo, poliamorosa e queer – e, ainda assim, a falta de transparência entre ela mesma e seus amantes ao longo da série sugere que não apenas Nola, mas também os criadores da trama, não têm muita clareza do que fazer com esses conceitos.

Para o bem ou para o mal, cada episódio é dominado pelo antigo e peculiar ponto de vista de Lee. (Ele escreveu vários capítulos e dirigiu toda a série.) Talvez por isso a série pareça desajustada. Ou talvez isso se deva ao fato de que muitos dos seus autores, incluindo a dramaturga Lynn Nottage, vencedora do Pulitzer, sejam mais velhos, mais tarimbados no teatro do que na televisão.

Seja qual for o motivo, o resultado é uma série que deseja ardentemente ser antenada e gerar identificação, mas que, com seus monólogos e sua estrutura no estilo “um problema por semana”, parece tudo menos isso.

OHNNY NUNEZ VIA GETTY IMAGES
A produtora executiva Tonya Lewis Lee e Spike Lee, na pré-estreia de ‘Ela Quer Tudo’, em 11 de novembro.

No segundo episódio, #Bootyful [gíria usada no lugar de beautiful, bonito], Shemekka, amiga de Nola, pensa muito sobre a possibilidade de se injetar silicone para aumentar o bumbum. Apesar da forte pretensão da série de empoderar as mulheres negras, a narrativa acaba humilhando e envergonhando Shemekka – que decide se submeter ao procedimento para realizar uma sonhada performance na boate onde trabalha, mas termina no hospital depois de sua bunda “esguichar” silicone grotescamente por causa de um tombo. Shemekka fica de cama na maioria dos outros episódios. Esse é o tipo de moralismo ultrapassado que mancha outras excelentes partes da série.

Nola é um arquétipo, um enigma bonito, mais do que uma pessoa. O problema aqui é que a série inteira é sobre Nola se opondo aos rótulos, às definições das outras pessoas sobre quem ela é, às apropriações e expectativas. No final da série, num episódio que se passa no Dia de Ação de Graças, Nola convida seus três amantes para um jantar e vive uma súbita descoberta: ela é o homem dos seus sonhos. Mas Nola é uma personagem plana demais para que essa epifania tenha algum efeito. Isso é apenas a série lhe atribuindo outro rótulo arbitrário.

Ela Quer Ter Tudo tem momentos de fulgor genuíno: a atuação estranha e hilária de Anthony Ramos como um dos amantes de Nola; a excelente trilha sonora, formada inteiramente por música negra; os comentários sobre a gentrificação de Fort Greene, a brutalidade policial e Donald Trump; e tudo de DeWanda Wise.

Mas a série tem numerosas falhas e, com razão, apontaram-lhe o dedo por elas – por sua representação limitada da sexualidade queer negra feminina, por sua misoginia inconsciente, por seu radicalismo superficial.

Essas críticas são o que há de mais valioso sobre Ela Quer Tudo. Essa série imperfeita, às vezes profundamente irritante por seu tom e seu ponto de vista, marca um ponto importante no debate sobre diversidade e representação: é um trabalho de arte negra sem brilho que é livre para ser sem brilho, que não tem que suportar todo o peso da cultura da qual surgiu. Não precisa representar nada além das suas próprias ambições.

Há espaço para a arte negra medíocre. Há espaço para a arte negra da qual nem todos os negros têm que gostar. Há espaço para a arte negra que fica aquém do seu potencial. Nola é um ótimo exemplo disso: suas belas e realistas imagens de mulher negra são razoáveis, até que ela se esforça em ir além de representações arquetípicas e em direção a algo mais pessoal e difícil.

Algumas obras de arte negra irão nos capturar, pungentemente, de uma forma que reverbera; outras vão falhar completamente nesse objetivo; e existem as que, como Ela Quer Tudo, serão uma mistura frustrada das duas coisas. É importante reconhecer isso, especialmente no caso de um criador e líder cultural como Lee, que durante anos gozou de uma espécie de imunidade crítica entre os espectadores negros.

É um trabalho de arte negra sem brilho que é livre para ser sem brilho, que não tem que suportar todo o peso da cultura da qual surgiu. Não precisa representar nada além das suas próprias ambições.

Ninguém nega a importância dos trabalhos anteriores de Lee, desde Faça a Coisa Certaaté Lute Pela Coisa Certa e Malcolm X. Ele fez filmes para a cultura e sobre a cultura que integraram o espírito da época sem nunca precisar agradar os públicos brancos.

Lee também fez filmes não tão incríveis. Mas sua presença e proeminência no mainstream era uma vitória tão difícil de conseguir, para si mesmo e para os negros em geral, e seus piores críticos confirmavam com tanta frequência a necessidade e a urgência de seu trabalho, que ele parecia contar com uma “carta branca” das pessoas mais bem preparadas para participarem de seus filmes. À medida que sua filmografia crescia, suas fraquezas como contador de histórias se tornaram mais pronunciadas – as desatualizadas políticas racial e de gênero de Chi-Raq, a estilização excessiva e errática de Verão em Red Hook – e seu trabalho parecia perder contato com o que inicialmente fizera dele um diretor essencial.

Ela Quer Tudo, no fim das contas, é tanto uma peça de profunda nostalgia de um tempo em que a voz de Lee soava fresca e singular como uma exploração da sexualidade e autonomia feminina negra. A primeira temporada da série termina com Nola finalmente assumindo o controle de suas relações com os amantes, dispensando-os e evitando, felizmente, o perturbador estupro do filme original. Isso mostra crescimento, mas boa parte da série parece incomodamente atada ao passado. O que mudou desde o She’s Gotta Have It original é que agora Lee é um entre vários grandes cineastas negros. Ele não é “o” grande cineasta negro, assim como seu trabalho e sua estatura não são frágeis demais para resistir à crítica e ao debate.

É assim que a arte, a representação, as conversas sobre as maneiras em que refletimos sobre nós mesmos se tornam mais robustas, melhores e mais autênticas. Não, Ela Quer Ter Tudo não é ótima. Mas é ótimo que exista.

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