Elites brasileiras são identitaristas de classe?

Da econômica à cultural, há um favorecimento sistemático do próprio grupo

A teoria econômica tradicional presume que as pessoas agem movidas por incentivos monetários. Mas o livro “Identity Economics”, de George Akerlof, prêmio Nobel de Economia, e Rachel Kranton, lembra que os indivíduos também buscam algo menos mensurável. Eles buscam o pertencimento.

Pertencer a um grupo não é apenas uma questão de afeto. Representa, muitas vezes, o direito de estar à mesa onde se decide o futuro, ainda que, em diversos casos, tal mesa esteja repleta de pessoas sem graça.

No Brasil, essa dinâmica ajuda a entender por que a mobilidade social é, tantas vezes, um salto curto. Ascender na renda ou obter diplomas não significa atravessar a fronteira que separa os incluídos dos excluídos.

Um grupo de pessoas vestindo camisetas verdes está unindo suas mãos em um gesto de união ou celebração. As mãos estão sobrepostas, formando uma pilha no centro da imagem. O ambiente parece ser interno, com móveis ao fundo, e as pessoas estão sorrindo, transmitindo um sentimento de camaradagem e trabalho em equipe.
Grupo de pessoas colocam as mãos uma sobre a outra em gesto de união – Syda Productions/Adobe Stock

As normas e códigos que definem a elite, seja econômica, cultural ou acadêmica, operam como um mecanismo de segregação. Determinam quem fala a língua do grupo, não apenas no sentido literal, mas no domínio das referências, do vestuário e até do humor aceitável, por mais que, em vários casos, esse humor seja ruim.

Essas barreiras não estão no edital de concursos nem nos processos seletivos. Mas pesam. Um jovem de origem desfavorecida que chega a um escritório de advocacia de prestígio carrega não apenas a pressão de lidar com causas difíceis, mas também a de agir segundo o molde exigido. Ele precisará redefinir seus valores. Por exemplo, em pleno verão tropical, precisará gastar alguns reais para se fantasiar com terno e gravata.

Além disso, como mencionei em uma coluna anterior chamada “Você não é um dos nossos“, adaptar-se ao novo grupo costuma significar perder parte da conexão com o lugar de origem, resultando na sensação paradoxal de não pertencer a lugar algum.

E, no Brasil, o pertencimento é assimétrico. Para alguns poucos, é herdado. Para o povão, é negociado a cada interação. Essa negociação, tantas vezes exaustiva, tem efeitos econômicos, pois limita redes de contato, restringe promoções e reduz a confiança mútua, reforçando a desigualdade.

No final, não é apenas sobre ter credenciais da educação formal para entrar, mas sobre permanecer sem ser empurrado para fora pela pressão de não se encaixar. Curiosamente, trata-se de se encaixar em caixinhas que, em geral, não pensam fora da caixa.

O pertencimento não é apenas buscado, mas também concedido e as elites funcionam como guardiãs dessa fronteira. Mesmo instituições que se dizem abertas operam mecanismos de exclusão, como, por exemplo, a preferência por entrantes com características e valores semelhantes, o que, no fim, é apenas um eufemismo para aqueles que já dominam as normas do grupo.

Assim, políticas de inclusão que ampliam o acesso formal à educação ou ao trabalho terão impacto limitado se não vierem acompanhadas de uma mudança cultural que expanda os padrões do que é considerado legítimo.

Se você quiser aprender mais sobre esse assunto, venha ao lançamento do meu novo livro “A Loteria do Nascimento”, nesta quarta-feira (20), às 18h no Insper. No mais, essa coluna é uma homenagem à música “Refazenda”, escrita e interpretada por Gilberto Gil.

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Michael França – Ciclista, vencedor do Prêmio Jabuti Acadêmico, economista pela USP e pesquisador do Insper. Foi visiting scholar nas universidades de Columbia e Stanford

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