Em aula aberta, Sueli Carneiro debate como o racismo se expressa nas relações de poder

A filósofa divulgou seu livro Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser em evento realizado na USP

Sueli Carneiro (à direita) esteve na FEA a convite de Antônia Quintão (à esquerda) e Silvia Casa Nova – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Nesta terça-feira (18), a Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP recebeu a filósofa e ativista Sueli Carneiro para uma participação em uma disciplina da pós-graduação. A aula, sediada no Auditório da Congregação, teve como tema o conceito do dispositivo de racialidade, elaborado pela filósofa em sua tese de doutorado. O conceito explica como o racismo se expressa nas relações de poder na sociedade brasileira, selecionando quais vidas e conhecimentos serão preservados e quais serão sistematicamente exterminados.

Sueli defendeu a tese em 2005, na Faculdade de Educação (FE) da USP. Para desenvolver sua teoria, teve como base as teorias do pensador francês Michel Foucault. Em 2023, a tese foi publicada em forma de livro pela editora Zahar, com o nome de Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser.

A escritora ministrou a aula aberta a convite das professoras Antônia Quintão e Silvia Casa Nova, responsáveis pela disciplina Interseccionalidades em Organizações Diversas, uma parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA) da FEA, o Geledés – Instituto da Mulher Negra e o Núcleo FEA de Pesquisa e Extensão em Gênero, Raça e Sexualidade (Generas). A aula foi mediada por Antônia e pela professora Akira Galvão.

Ao longo da palestra, Sueli contou que precisou procurar novas referências para explicar como a racialidade está presente nas relações de poder no Brasil. Isso porque a ciência política brasileira não abordava temas como racialidade, etnicidade, racismo, colonialismo e imperialismo.

“(É) como se fossem irrelevantes e secundários, e na verdade eles são fundantes de um conjunto de disparidades sociais. Essas coisas construíram o mundo que se vive, desde o colonialismo até aqui. A ausência desses temas na ciência política nacional se deve a quê? Acho que o dispositivo de racialidade explica”, afirmou Sueli em entrevista ao Jornal da USP.

Da ideia ao livro

Sueli ingressou na USP em 1972 e, como relatou, teve o primeiro “insight” para o desenvolvimento do Dispositivo de racialidade ainda em 1980, quando, durante uma disciplina do hoje aposentado professor titular José Augusto Guilhon Albuquerque, pôde estudar os primeiros volumes de História da sexualidade, de Foucault. Nesse trabalho, por meio da análise do lugar da sexualidade na sociedade ocidental, o filósofo desenvolveu o conceito dos dispositivos de poder.

Segundo Sueli, o dispositivo é um “conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. O dispositivo é a rede que se estabelece entre esses elementos”.

Naquela ocasião, Sueli apresentou como trabalho de conclusão de curso um fluxograma no qual, pela primeira vez, explorou se a racialidade continha os elementos necessários para configurar um dispositivo de poder.

No entanto, a ideia foi colocada de lado por 20 anos, nos quais os esforços da filósofa como ativista feminista e antirracista acabaram engolindo suas pretensões acadêmicas. Quem a convenceu a retomar a produção teórica foi a professora Roseli Fischmann, da FE. Sueli topou apenas sob a condição de que pudesse trabalhar aquela antiga tese de sua graduação, e sob a orientação de Roseli. Disso nasceu sua tese de doutorado.

A filósofa conta que buscou demonstrar que “a multiplicidade de elementos presentes nas relações raciais no Brasil configura um dispositivo que produz um campo de saber, uma esfera de poder e modos de subjetivação mediados pelas racialidades”.

O “outro”, racializado

Com base no antropólogo congolês-brasileiro Kabengele Munanga, a pensadora explicou que a racialização é um processo que remonta ao Iluminismo. Com o fim do monopólio da Igreja sobre o conhecimento, reabriu-se a discussão sobre como tratar aquele “outro” com o qual se teve contato durante o processo colonial.

Houve, portanto, um movimento teórico que buscou decretar a inferioridade racial de povos não brancos e, assim, negar seu status como sujeitos de conhecimento. Tal processo, Sueli contou, constitui exatamente o que o pensador português Boaventura de Souza Santos propôs com o conceito de epistemicídio, isto é, a destruição de formas divergentes de conhecimento.

“O dispositivo de racialidade, na sua dimensão de fábrica discursiva, constituinte de um campo de saber sobre outro, especialmente sobre o africano e seus descendentes, promoveu a negação da plena humanidade daqueles que carregam em si a negritude.”– Sueli Carneiro

Para evidenciar a natureza do poder que o dispositivo de racialidade institui, Sueli teve que olhar para fora do Brasil e recorrer ao filósofo jamaicano Charles Mills. O teórico propôs o conceito do Contrato Racial, que, segundo ela, “estabelece um Estado Racial e um sistema jurídico onde o status de brancos e não brancos é claramente demarcado quer pela lei, quer pelo costume”.

Ao Jornal da USP, a pensadora afirmou que, desamparada em meio à produção brasileira, escolheu Mills justamente porque ele problematizava essa ausência na filosofia política tradicional: “O que ele mostra é que não é incapacidade de observação. Essa ausência é deliberada. Ela esconde um poder que não é nomeado, que não é admitido, que se apresenta como naturalizado, que é o poder da branquitude”.

A resistência contra a branquitude

Segundo Sueli, a branquitude se evidencia na estrutura social brasileira pela absoluta prevalência de pessoas brancas em todas as instâncias de poder da sociedade. Um produto, diz, de um conjunto de critérios e procedimentos que garante a preferência aos brancos nos cargos sociais mais altos: “A isso tem se chamado meritocracia”.

Ao final da palestra, a filósofa apontou outra dimensão do dispositivo de racialidade: como todo dispositivo de poder, ele produz sua própria resistência. Sobre o livro, afirmou que “nesse trabalho, procuramos apreender essa resistência através da voz de sujeitos que encarnam, com suas vidas, uma memória ancestral, o processo tortuoso de construção da identidade, os enfrentamentos com o racismo e a tomada de consciência individual e da dimensão política e coletiva desse processo”.

Respondeu também algumas perguntas da plateia, e, pouco antes do intervalo, recebeu das organizadoras uma sacola com alguns presentes. “Vou dizer pra vocês, eu estou sendo muito mimada por essa universidade, mas o que ela já tentou me epistemizar vocês não têm noção”, brincou, tirando alguns itens da sacola. “Mas sou grata, porque as autocríticas têm sido feitas”.

Clique na imagem e assista a gravação do evento:


Leia também: Sueli Carneiro analisa as raízes do racismo estrutural em aula aberta na FEA-USP

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