Em meio a protestos, deputados derrubam projeto que proíbe sacrifício de animais

Por 11 votos contrários e um a favor, parlamentares consideraram o projeto inconstitucional

O Teatro Dante Barone, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, parecia um cenário de guerra na manhã desta terça-feira. De um lado, estava uma massa de seguidores de religiões de matriz africana. Do outro, separados por uma grade para evitar confronto direto, se reuniam defensores da causa animal.

A casa cheia — de gente, barulho, gritaria e intolerância dos dois lados — tinha motivo: andares acima, a Comissão de Constituição e Justiça analisava o projeto de autoria da deputada Regina Becker (PDT), que previa a proibição do uso de animais em sacrifícios religiosos. Por volta das 10h15min,o texto foi votado — a votação já havia sido adiada duas vezes. E, por 11 votos contrários e um a favor, o texto foi considerado inconstitucional pela comissão.Confira no vídeo abaixo agressões entre manifestantes:

Antes disso, enquanto a sessão era transmitida no telão do teatro, defensores da causa animal usavam apitos, estouravam balões, vaiavam e faziam barulho, o que impediu que os deputados contra o projeto pudessem ser ouvidos.

— Assassino! — gritou uma mulher.

— Bandido! — complementou outra, quando o deputado Luiz Fernando Mainardi (PT) tomou a palavra e defendeu o livre exercício dos cultos religiosos.

— Aaaaaai, eu estou morrendo de raiva! — berrou uma manifestante, de luvas rosas com as inscrições “love” e “amore” nas mãos.

— Por que tanta raiva? — perguntou alguém, do outro lado da cerca que separava os grupos.

— Porque esses deputados são uns idiotas!!! — rebateu uma manifestante, com cartaz em mãos.

O mesmo ocorreu quando o deputado a favor do projeto falou. Religiosos fizeram barulho, o que impediu que a fala do parlamentar fosse ouvida.

Para se posicionar a favor do projeto, ativistas vieram do interior do Estado. Para Cátia Giesch, membro do PAC (Proteção Animal Caxias), o debate estava sendo desvirtuado pelos políticos:

— Aqui ninguém é contra à liberdade religiosa, mas ao uso dos animais de forma desumana, com sofrimento e tortura.

Do lado oposto, estavam cartazes contra o “preconceito religioso”. Com batuques e tambores, por volta das 10h (pouco antes do início da votação), religiosos comemoravam a dispersão dos ativistas da causa animal — que, de supetão, deixaram o teatro.

Quando se formou um vazio absoluto no lugar antes ocupado pelos manifestantes de camisetas verdes, a massa vestida de branco cantou em coro:

— A Casa (Assembleia) é nossa! A Casa é nossa!

Do lado de fora, nos corredores da Assembleia, ativistas em defesa dos animais retrucavam, com tinta vermelho-sangue no rosto:

— A Casa é do povo!!!

Para Juliano de Oxum, que veio com um grupo de Pelotas, a proposta da deputada Regina Becker (PDT) está “semeando a raiva na população gaúcha”.

— A nobre deputada quer nos ganhar no cansaço. Essa casa é uma trincheira de lutas. Mas já está passando do limite do respeito — disse Juliano.

Após a sessão, houve agressões na porta do Teatro Dante Barone, na Assembleia Foto: Ronaldo Bernardi / Agência RBS
Após a sessão, houve agressões na porta do Teatro Dante Barone, na Assembleia
Foto: Ronaldo Bernardi / Agência RBS
Sessão encerrada com a vitória dos religiosos de matriz africana, os dois grupos deixavam a Casa e se encontraram nos corredores. Houve agressões verbais e empurra-empurra em um dos cantos próximos à entrada ao teatro. O povo dos terreiros entrou novamente para o auditório, deixando-o por outra saída.

Já na rua em frente à Assembleia, enquanto os religiosos se preparavam pra iniciar uma marcha até a prefeitura, um líder religioso, do alto de um caminhão de som, pedia o fim da violência.

— Nossa voz é o tambor — bradava o homem ao microfone.

No Largo Glênio Peres, após a descida pela Borges de Medeiros, o grupo de religiosos cutucou mais uma vez a deputada Regina Becker e seu marido, o prefeito José Fortunati:

— Vocês mexeram num vespeiro — disse um manifestante, em cima do caminhão de som.

Para o presidente da Federação Afroumbandista e Espiritualista do Estado (Faurs), Everton Alfonsin, a votação que definiu o projeto como inconstitucional é vista como uma vitória pela entidade, que representa 63 mil terreiros no Rio Grande do Sul.

— Não sacrificamos animais, os sacralizamos em rituais fechados nos terreiros e consumimos toda a carne depois. Estão nos chamando de assassinos, mas então toda a população que come carne é assassina também. Os animais encontrados mortos nas ruas não representam rituais das nossas religiões — relatou.

Foto: Ronaldo Bernardi / Agência RBS
Foto: Ronaldo Bernardi / Agência RBS

Após derrota, Regina Becker quer levar projeto a plenário

A deputada Regina Becker acompanhou a votação até as 11h, pois teve de viajar a Brasília. A pedetista informou ter ficado “admirada” com a posição dos parlamentares:

— Não fiquei surpresa, mas admirada pelo fato de encararem (o projeto) como inconstitucional. Foi examinado o mérito, e não a constitucionalidade — afirmou.

Apesar da derrota desta terça-feira, a parlamentar afirmou que percorrerá “todos os caminhos legais possíveis” para a aprovação do projeto. O próximo passo da deputada é encaminhar um pedido à mesa diretora da casa, para que ele seja levado ao plenário para votação.

— Mesmo tendo sido definido como inconstitucional pela comissão, o projeto pode ir a plenário, caso a mesa diretora aprove — relatou Regina, que deve encaminhar a solicitação na próxima semana.

Para a deputada, este seria o penúltimo recurso para aprovar o projeto. Como última carta na manga, ela aguarda a análise de um pedido de plebiscito, encaminhado em abril. A parlamentar informa que o Projeto de Decreto Legislativo que propõe a votação popular foi encaminhado ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE), e aguarda parecer do órgão. A ideia da pedetista é realizar a consulta aos gaúchos junto às próximas eleições.

— Caso o TRE entenda ser possível realizar o plebiscito junto às eleições, o projeto volta para a mesa diretora e pode ser votado em plenário — explica.

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