Em memória dos Pretos Novos

O tratamento dedicado pelo poder público à memória nacional é vergonhoso, mas diz muito sobre a sociedade

A jornalista Ana Cristina Rosa é Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública) - Foto: Keiny Andrade/Folhapress

Os mortos falam. Não estou me referindo a nenhum episódio da série de investigação criminal CSI (Crime Scene Investigation) ou à existência de vida após a morte. Refiro-me à única conclusão óbvia quando se toma conhecimento das condições em que foram encontrados (por acaso, é bom dizer) os restos mortais dos africanos escravizados descartados no Cemitério dos Pretos Novos do Valongo, que funcionou na região hoje conhecida como Pequena África, no RJ.

Primeiro esqueleto inteiro e articulado encontrado no Cemitério dos Pretos Novos, no Rio. O achado foi batizado de Bakhita, em homenagem à padroeira dos sequestrados e escravizados, Santa Josefina Bakhita. – Divulgação/Instituto Pretos Novos

Antes de serem jogados numa cova rasa, em vala comum, esses corpos eram “queimados, desarticulados, quebrados, retorcidos, espalhados pelo terreno, depois revolvidos, remexidos e reagrupados de acordo com seus tamanhos”, conforme o livro “Pretos Novos do Valongo – escravidão e herança africana no RJ”. Um total desrespeito à cosmogonia africana, na qual um enterro digno é condição para o descanso em paz e na companhia dos ancestrais.

No Instituto dos Pretos Novos (IPN), organização sem fins lucrativos que funciona em dois casarões construídos no século 18 sobre a área do então campo santo, os mortos falam e dizem muito sobre a desumanização de pessoas tratadas como objetos ou animais de carga. O que restou dos milhares de negros que faleceram recém-chegados ao Brasil pelo Cais do Valongo e foram enterrados no Cemitério dos Pretos Novos se encontra preservado e em estudos pelo instituto.

Mas há gente determinada a calar essas vozes saídas da cova em formato de ossadas humanas para atestar os horrores praticados contra africanos e seus descendentes nos quase 400 anos do período escravista no Brasil. Para além da falta ou escassez de financiamento para preservar a memória da escravidão, o Estado também cria problema. Por exemplo: há alguns dias, a Prefeitura do Rio de Janeiro providenciou notificação de penhora e avaliação dos imóveis que abrigam o Cemitério por dívida de IPTU.

O tratamento dedicado pelo poder público à memória nacional é vergonhoso, mas diz muito sobre a sociedade brasileira. Continuo na semana que vem…


Ana Cristina Rosa – Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

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