Em nome da equidade, mais desigualdades

Até agora, as reformas previdenciárias têm sido realizadas em nome do equilíbrio financeiro. Agora que o déficit está sendo revertido – ao preço de um declínio contínuo no valor das aposentadorias – é a vez de o Sr. Emmanuel Macron invocar a “equidade”. Pilotado por uma comissão chefiada pelo Sr. Jean-Paul Delevoye, o projeto tem como objetivo oficial a criação de um sistema universal que substitua os 42 regimes atuais, que seria supostamente mais justo, mais simples e mais compreensível: “Um euro contribuído dará os mesmos direitos. (…) Com carreira idêntica e renda idêntica, a aposentadoria deve ser idêntica”, anuncia um comunicado da Comissão. Dessa forma, para uma carreira curta e com baixo salário, uma baixa aposentadoria! A mesma coisa para todos…

Por Christiane Marty, Do Carta Maior

Foto em preto e branco de uma mulher idosa com uma mão na boca e a outra tampando o olho esquerdo
(Foto: Imagem retirada do site Carta Maior)

Hoje, o sistema é constituído de regimes de base em anuidades e regimes complementares por pontos – como a Associação para o Regime de pensão complementar (Arrco) para todos os empregados e a Associação Geral das Instituições de Pensões de Executivos (Agirc) apenas para dirigentes de empresas. São regimes por repartição: as contribuições dos ativos são usadas diretamente para pagar as pensões dos aposentados. Nos regimes por capitalização, as contribuições alimentam investimentos financeiros cujo retorno futuro (incerto) determinará o valor da pensão. A capitalização segue a lógica de um seguro individual, a antítese da solidariedade que está na base da proteção social francesa.

Na idade mínima legal para se aposentar (atualmente 62 anos), um regime de anuidade garante uma taxa de substituição (relação entre a pensão e o salário) para uma carreira completa definida pelo número de anos de contribuição (40 anos e quatro meses a 43 anos, dependendo da data de nascimento); dá, assim, um vislumbre da futura pensão. Em um sistema de pontos – o que foi escolhido pelo governo, de acordo com documentos trazidos a público –, as contribuições são usadas para comprar pontos ao longo da vida ativa. No momento da aposentadoria, o valor da pensão é calculado multiplicando-se o número de pontos ganhos pelo chamado “valor do serviço”. Este último, como o preço de compra, é ajustado a cada ano pelos gestores de fundos de pensão, a fim de equilibrar as finanças. Não há nem taxa de substituição garantida nem a noção de carreira completa, portanto, não há como estimar o valor da pensão. Esta reflete de perto a soma das contribuições feitas ao longo da carreira e reforça a “contribuição” do sistema. Por outro lado, a parte de solidariedade – que não é contrapartida de contribuições – é muito reduzida. A lógica da contributividade se opõe à lógica da solidariedade e da justiça social, que implica uma redistribuição para aqueles que não poderiam de outra forma garantir o direito a uma aposentadoria.

Outra opção – preferida pelo presidente – havia sido considerada: o regime de contas nocionais, como na Suécia. As contribuições são depositadas em uma conta individual. No momento da aposentadoria, o montante acumulado é reajustado (com base na taxa de crescimento da renda média da atividade) e, em seguida, dividido pela expectativa de vida restante, em teoria, que varia por faixa etária. Em termos concretos, pessoas de 65 anos, pertencentes a um grupo etário cuja expectativa de vida estimada é de 20 anos, verão o montante de seus direitos adquiridos – e, portanto, o nível de sua pensão anual – dividido por 20; se for 25, será dividido por 25, etc. Quanto maior a expectativa de vida, menor será a pensão. A soma das pensões recebidas durante a aposentadoria, portanto, chega ainda mais perto da soma das contribuições pagas e, portanto, de uma contributividade pura.

Essa opção parecia descartada. No entanto, o documento de trabalho da Comissão de fevereiro sobre as “Regras para a condução do sistema universal” indica que “é necessário levar em consideração a expectativa de vida”, enquanto Delevoye afirma que o valor do ponto irá integrar a esperança de vida[ii]. Teoricamente, as mulheres, que vivem em média mais tempo, não devem ser penalizadas: as diretivas europeias proíbem qualquer discriminação baseada no sexo. Mas muitos indivíduos não respeitam a expectativa de vida teórica de sua classe etária… Assim, os operários morrem, em média, seis anos mais cedo que os executivos. O nível de renda também importa: os 5% mais ricos têm uma expectativa de vida 13 anos mais longa do que os 5% mais pobres para homens e de 8 anos para mulheres[iii]. Se o cálculo do ponto também incluir a expectativa de vida, o sistema operará uma forte redistribuição, transferindo dos trabalhadores para os executivos e da população de baixa renda para a de renda mais alta. Ao contrário do prometido, cada euro contribuído não assegurará “os mesmos direitos”, já que estes dependerão do ano de nascimento e da idade de aposentadoria.

Além disso, com este sistema, o cálculo da pensão leva em conta o conjunto da carreira, e não mais os 25 melhores anos de salário, como é o caso hoje no regime geral, ou os seis últimos meses, como no serviço público. Todo período não trabalhado implica, portanto, em uma redução da futura pensão. As pessoas que tiveram períodos de desemprego não indenizado, trabalhos em meio período, carreiras curtas ou salários baixos são automaticamente penalizadas. Na reforma de 1993, o cálculo já havia sido modificado para tomar como referência a média dos melhores 25 anos, em vez dos dez melhores anteriores – um primeiro passo em direção a mais contributividade. A reforma resultou em uma redução significativa no montante da aposentadoria, ainda mais severa para as mulheres que, por causa de carreiras mais curtas, têm mais anos ruins. Para as gerações nascidas entre 1945 e 1954, a queda da pensão básica chegou a 16% para homens e 20% para mulheres[iv].

Da mesma forma, para os funcionários públicos, a consideração de toda a carreira em vez dos últimos seis meses resultará em pensões mais baixas. Prevê-se, portanto, que as gratificações sejam incluídas no cálculo, o que não é o caso hoje. Mas nada garante que esta inclusão baste: tudo depende do montante. Ora, as funcionárias públicas recebem gratificações significativamente menores que os homens[v]. E, em muitas atividades, simplesmente não há gratificação. O Sr. Delevoye reconhece que haverá funcionários públicos penalizados, mas considera que será necessário “aproveitar esta oportunidade para eventualmente implementar uma política de remuneração”[vi]!

De forma geral, as desigualdades entre mulheres e homens serão agravadas. Basta comparar as aposentadorias recebidas nos regimes por anuidade e nos regimes complementares com pontos. As pensões das mulheres representam entre 41% (Agirc) e 61% (Arrco) das pensões masculinas, em comparação a uma razão entre 74% e 90% para os regimes por anuidade. A relação é sistematicamente menor em regimes por pontos.

Apesar de o governo afirmar que o princípio da repartição será mantido, seu plano inclui a abertura para a capitalização. A faixa salarial mensal maior que 10.000 euros brutos (contra 27.016 euros hoje), deixará de contribuir para o sistema comum; esses altos salários terão que adotar o sistema de previdência em aplicações financeiras, que dará direito a benefícios fiscais – pagos, logo, por todos os contribuintes, conforme já previsto na Lei Pacte, adotada em 11 de abril. Esta medida é apresentada como um fator de justiça. Mas, como a capitalização já entrou com um pezinho no sistema, pode ter seu campo facilmente ampliado, bastando diminuir o limite de renda não autorizada a contribuir para o sistema universal. Até porque a queda no valor das pensões, ao longo das sucessivas reformas, já levou muita gente – quem pode – a contratar um plano de previdência complementar junto a seguradoras privadas. Este é, no fundo, o objetivo implícito dessas reformas.

O Sr. Delevoye também gosta de dizer que “a aposentadoria é o reflexo da carreira; isso é algo justo. Se você tiver uma bela carreira, terá uma boa aposentadoria; se tiver uma carreira menos bela, sua aposentadoria será equivalente”[vii]. Este objetivo reflete não a equidade pretensamente almejada pelo governo, mas um cálculo mecânico cego. Porque todos não têm as mesmas chances de ter uma boa carreira, a começar pela desigualdade no acesso a uma formação entre as diferentes categorias sociais, segundo restrições econômicas (desemprego, precariedade…), riscos de doença ou normas sociais que atribuem às mulheres a educação das crianças, por exemplo. A equidade consistiria precisamente em proporcionar uma aposentadoria decente àqueles que não tiveram uma carreira tão bela.

Foi para levar em conta estes fatores que os dispositivos de solidariedade (direitos familiares, pensões mínimas, reversão etc.) foram integrados ao longo do tempo ao sistema previdenciário, através da atribuição de direitos não contributivos (que não são contrapartida de contribuições). O projeto não pretende suprimir a solidariedade, apesar das afirmações paradoxais como “aposentadoria é um reflexo da carreira”. Pontos seriam atribuídos para “levar em conta interrupções de atividade relacionadas a incertezas profissionais ou de vida”, “as carreiras longas, as atividades difíceis, as deficiências” e para “compensar os impactos, na carreira dos pais, da chegada ou educação da criança”. Se considerarmos que as desigualdades nas aposentadorias de mulheres e homens por causa destes impactos ainda são de 24% em média[viii], ou que as negociações sobre a periculosidade, descrita na lei de agosto de 2003, ainda não chegaram ao fim, compreenderemos que a solidariedade deveria ser significativamente reforçada.

No entanto, foi decidido que a reforma seria feita sem oscilações e que as despesas correntes, 13,8% do PIB, representariam um teto para o futuro. Podemos, portanto, temer um novo declínio nas aposentadorias. Porque, de acordo com os documentos, a solidariedade constituiria um bloco separado do cerne do sistema ligado aos direitos contributivos, e seu financiamento dependeria – mais do que hoje – de impostos, isto é, do orçamento do Estado. No contexto atual de uma busca infinita de cortes nos gastos públicos, há aí um risco de regressão. O comissário está ciente disso, aliás, pois declarou: “Se eu confiasse a governança do sistema a Bercy (bairro parisiense onde fica sede do ministério da economia francês, usado como sinônimo deste ministério), acho que haveria grande preocupação”. Belo eufemismo. De fato, a decisão de estabelecer um teto ao total das aposentadorias em relação à riqueza produzida, enquanto a proporção de aposentados na população aumentará, equivale a programar o seu empobrecimento.

Quanto à pretensa liberdade de escolher entre se aposentar e continuar a trabalhar para ganhar pontos adicionais, ela é bem reduzida uma vez que se sabe que apenas metade das pessoas ainda estão empregadas quando se aposentam, e que a deterioração profissional ocorre bem antes da idade de partida em muitas atividades. Além disso, atrasar o momento da aposentadoria poderia se revelar um erro de cálculo, pois não há garantia de que o valor do ponto não cairá.

A defesa de um controle automático capaz de equilibrar o sistema impede qualquer debate sobre as questões políticas a evolução da previdência. Estabelecer um teto para as despesas relacionadas à aposentadoria permite evitar a discussão essencial sobre a divisão da riqueza produzida entre o a renda do trabalho (massa salarial incluindo as contribuições) e do capital (que sabemos que não para de aumentar). A única solução proposta hoje consiste em arbitrar entre os interesses daqueles que trabalham e dos que trabalharam, entre a população ativa e os aposentados.

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