Em Portugal, professora revela cotidiano de racismo em sala de aula: “Gosto de pretos. Até tenho um”

Ela leciona em Lisboa e testemunhou discriminação ao longo de um ano letivo

FONTEO Globo, por Gian Amato
Estudante chega para primeiro dia de aula na reabertura das escolas em Lisboa em 2021 Patrícia de Melo Moreira/AFP/Arquivo

O cotidiano de racismo, discriminação e xenofobia no ensino público português desafia uma professora. Ela tenta ensinar como reverter o que chamou de “legado renovado da escravidão”. Na maioria das vezes, segundo contou ao Portugal Giro, os alunos trazem o preconceito de casa para o dia a dia em sala de aula.

A professora pediu anonimato, porque teme represálias, para contar que testemunhou vários episódios racistas e xenófobos ao longo do último ano letivo. Partem tanto de alunos quanto de professores. Em um deles, repreendeu o conteúdo de um bilhete que circulava em sala de aula. O conteúdo era similar a “Gosto de pretos. Até tenho um”. As reações eram em tom de piada até parar nas mãos de um aluno africano.

— Alusão à escravidão é pesado para alunos. Tem piada ser chicoteado, queimado e torturado? Disse que não queria mais aquilo e baixaram a cabeça. Também proibi que chamassem os amigos negros de macacos, algo que era comum entre eles, mas não tolero nem de brincadeira na minha sala — disse a professora.

Outro episódio aconteceu em reunião de professores. Estavam todos os docentes com cópias em papel das fichas dos alunos, com fotos. Algumas não estavam nítidas, muito escuras, o que motivou o comentário de uma professora.

— Aquela professora viu que a foto dos alunos negros ficaram mais escuras e borradas nas cópias em preto e branco de má qualidade. E disse que “as africanas são mesmo todas iguais, ainda mais com os cabelos crespos amarrados em coques”. Houve risos, mas a maioria ficou em silêncio — contou.

Apesar de ressaltar que os alunos são receptivos aos ensinamentos sobre os horrores do colonialismo, a professora percebe resistência dentro e fora de sala de aula:

— São reativos ao politicamente correto, que veem como futilidade, porque reproduzem comportamentos de fora da escola, de casa, ainda enraizados na sociedade portuguesa. Usam palavras que carregam o peso de um ponto de vista que não faz mais sentido no mundo global e dependente da imigração.

Ao falar do Padrão dos Descobrimentos, monumento erguido em Lisboa durante a ditadura do Estado Novo, a professora desagradou seus colegas de profissão.

— Explicava que é um monumento do ditador António Salazar, de legitimação da posse dos territórios africanos, que estavam em luta política de libertação. Falei que toda ditadura se vale da leitura do passado para validar o presente. E as demais professoras ficaram incomodadas. Foram criadas, assim como os pais dos alunos, com outra vivência. Apesar de tudo, e ainda bem, os jovens estão mais curiosos e com a cabeça mais aberta — contou.

Suas habilitações foram questionadas, apesar de ser pós-graduada.

— Ela começou a questionar minhas habilitações em plena sala da direção, mas fui direta e dei logo um fora. Ela insistiu, questionando se eu saberia ensinar. Fiquei tensa nos primeiros meses, mas ressalto que sempre tive liberdade e nunca sofri interferência ou diretriz para ensinar — afirmou.

Mesmo com liberdade, a professora fica indignada com alguns tópicos abordados superficialmente e procura sempre contextualizar:

— Há um livro com unidade sobre miscigenação, com imagem de um português branco e uma negra, que minimiza o fato dela ser uma escrava. Completamente desatualizado. Lógico que houve consenso em muitos casos, e até amor, mas esconder que também foi fruto do estupro e do poder é contar apenas metade da história, uma meia verdade que colabora para a perpetuação do racismo.

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