Em ‘Submundo’, Abdias Nascimento nos faz enxergar o Brasil atual

Ao relatar a sua experiência de encarcerado, o escritor, poeta, político, artista e jornalista confronta passado com presente

Quem acompanha a trajetória de Abdias Nascimento (1914-2011) pouco tem ideia dos percalços de sua vida antes de ele se tornar a grande liderança negra de todo o século 20 e início deste.

Sua memória vem sendo muito bem preservada, graças à dedicação de sua viúva, a cientista social Elisa Larkin do Nascimento, que dirige o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro).

Além da propagação da memória de um dos maiores militantes negros do século 20, o Ipeafro mantém a guarda e o acervo de obras e documentos que pertenceram a Nascimento, que, além da vida política, como deputado e senador da República, foi artista plástico, escritor, poeta, jornalista, ator, dramaturgo e diretor de teatro, fundador e criador do Teatro Experimental do Negro, que ajudou a projetar nomes como Ruth de Souza, Léa Garcia e Haroldo Costa.

E, eu diria, sobretudo agitador de um certo radicalismo cultural, de viés negro, hoje pouco usual.

A atriz Ruth de Souza – Acervo Globo

Do espólio desse grande acervo documental e memorialístico de Abdias Nascimento, brotou um texto fantástico, inédito até então –”Submundo: Cadernos de um Penitenciário”. O original, escrito quando Nascimento cumpria pena, desde 1943, na Penitenciária do Estado de São Paulo, o famigerado Carandiru, foi produzido a partir da perspectiva da “visão do cárcere”, do observador privilegiado, inteligente e perspicaz, que toma a prisão como um grande palco da representação não só da dor humana, mas de paixões e sentimentos que afloram e, como o pardal de perna quebrada, precisa encontrar seus próprios meios de sobrevivência.

Abdias Nascimento durante apresentação da peça ‘Sortilégio’, em 1957 – José Medeiros

Oitenta anos passados da laboração desses escritos –as tais “tecnologias afroancestrais de circulação” de ideias, como sistematiza a professora Denise Carrascosa, prefaciadora do livro–, “Submundo” é o projeto antiliterário de um jovem de 29 anos que, a exemplo de Lima Barreto (1880-1922), com “Diário do Hospício” e “O Cemitério dos Vivos”, e Graciliano Ramos (1892-1953), em “Memórias do Cárcere”, reescreve, cada qual à sua maneira, o processo interno de dor e tortura a que são submetidos seres humanos pelo sistema encarcerador e racista.

Abdias Nascimento, então militar, foi condenado e preso por insubordinação ao se recusar a datilografar um balancete. Por ironia do destino, vai ser na cadeia que produzirá a contraprova do seu crime: os textos que resultam hoje no “Submundo”, resultado de tomada de consciência e das muitas observações e escutas entre os seus irmãos de cela.

O autor, que teria trajetória surpreendente na política e no ativismo negro, dentro e fora do Brasil, passa em revista a história do país, poucas décadas após a abolição da escravatura e da institucionalização da chamada “democracia racial” brasileira. E, logo ele, revivido José do Patrocínio —espécie de abolicionista do século 20—, da tribuna da sua máquina de escrever, prematuramente, se configura no defensor dos direitos humanos e de uma sociedade mais justa e pluriétnica.

O aparecimento desse novo texto traz luz para questões pautadas por Abdias Nascimento ao longo de sua vida pública, não só como militante do movimento negro mas como intelectual. É arriscado dizer, mas Nascimento, através dessa narrativa, se humaniza perante questões cruciais que, desde os últimos 80 anos, desafiam a sociedade: o encarceramento em massa de individuais negros e pobres, a falência dos meios judiciários, a injustiça sobre os mais vulneráveis.

Ao ler Abdias Nascimento, percebemos o quanto sua “revolta social” vinha de longe. Por essas razões, bastantes para justificar qualquer premissa, a leitura de “Submundo” se faz necessária e urgente. Através dela, escrita com olhar visionário, podemos entender e enxergar um pouco mais do Brasil de hoje.

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