Desde junho de 2013, época em que eclodiram manifestações por todo o Brasil, Rafael Braga Vieira passou a ser inimigo declarado do Estado. Negro, pobre e da periferia, o crime em questão foi ser a carne mais barata do mercado. Recentemente, Rafael surgiu do esquecimento que lhe foi imposto pelo Estado e pela esquerda institucional, a qual, em regra, deixou de debater seu caso. O triste ressurgimento de Rafael Braga foi traduzido na notícia de que ele foi condenado, em 20 de abril, a cumprir 11 anos e três meses de reclusão, acrescidos de pagamento de uma multa de aproximadamente R$ 1.600,00.
Por Hysabella Conrado Do Justificando
Essa condenação é o ponto atual de uma história que começa em 20 de junho de 2013, início da série de protestos que tomaria aquele ano e o seguinte. Nessa data, Rafael foi abordado por policiais na saída do local onde dormia e foi preso por levar consigo duas garrafas de produtos de limpeza, compostos pelo desinfetante Pinho Sol e um frasco de água sanitária. Apesar da nítida ausência de qualquer conduta criminosa e mesmo sem participar do protesto ou ser militante de alguma bandeira, o jovem foi levado para 5ª delegacia da cidade.
Nesse mesmo ano, vários manifestantes foram presos – em regra, brancos e de classe média – e foram soltos rapidamente, na maioria dos casos no mesmo dia. Rafael Braga, no entanto, que sequer participava do ato, não teve o mesmo privilégio. Sob a alegação de que os produtos seriam usados na produção de coquetel molotov, a partir daquela data ficou preso durante 5 meses até o julgamento, quando então foi condenado a 5 anos de prisão, apesar de contar com o laudo favorável do Esquadrão Antibomba da Polícia Civil atestando o óbvio de que Pinho Sol e água sanitária não poderiam jamais ser considerados como explosivos.
Em 2014, Rafael chegou a conseguir o benefício do trabalho externo e passou para o regime semiaberto podendo exercer a função de auxiliar de serviços gerais num escritório de advocacia no centro do Rio de Janeiro (o mesmo escritório responsável pela sua defesa judicial), retornando à prisão todos os dias após o expediente. No dia 30 de outubro, após cumprir mais um dia de trabalho, ao voltar para dormir no cárcere ele parou ao lado do portão do presídio de Niterói cuja fachada continha uma pichação que dizia: “Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima p/baixo”. Rafael posou para uma foto e por causa disso, regrediu de regime e foi punido com 10 dias na “solitária”.
O DDH (Instituto de Defensores dos Direitos Humanos) pleiteou à Vara de Execuções Penais uma progressão de regime para Rafael Braga e em dezembro de 2015 foi permitido que ele cumprisse o restante de sua pena fora da prisão com a utilização de tornozeleira eletrônica, o que foi deferido. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), responsável por todas as acusações que levaram Rafael Braga até este ponto, recorreu da progressão de regime até o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que admitiu o recurso especial para regredir o jovem para o fechado, mas o caso ainda está pendente de julgamento e, por isso, Rafael pôde ficar pouco tempo longe da prisão.
No entanto, na manhã do dia 12 de Janeiro de 2016, Rafael foi preso por Policiais da Unidade de Policia Pacificadora na Vila Cruzeiro por tráfico de drogas e associação ao tráfico, quando ia da sua casa para a padaria. Segundo a versão dos policiais, ele carregava consigo o,6g da maconha e 9,3g de cocaína com “etiquetas” que faziam referência ao Comando Vermelho, facção criminosa que detém o monopólio do tráfico de varejo na região. Ele teria confessado informalmente e então foi encaminhado novamente à delegacia policial em flagrante. Até hoje, ele se encontra preso por essa acusação.
Ocorre que Rafael, quando ouvido, não só negou as acusações como apontou tortura e intimidação por parte dos policiais, os quais exigiam que ele dissesse informações referentes ao tráfico de drogas no local. Rafael afirma que o material foi plantado pelos policiais responsáveis pelo flagrante. Sua vizinha, Evelyn Barbara, em depoimento prestado à Justiça, afirmou que viu Rafael Braga sendo abordado sozinho e sem objetos na mão. Evelyn afirmou que ele foi agredido e arrastado até um ponto longe de sua visão.
O magistrado Ricardo Coronha Pinheiro, no entanto, escolheu não conferir qualquer relevância para o depoimento do réu e de sua vizinha, testemunha ocular da prática arbitrária policial. Pelo contrário, amparou uma condenação de 11 anos apenas e tão somente nas palavras dos policiais cuja conduta foi extremamente contestada e que, ainda que não tivesse sido, não seria suficiente para sustentar uma condenação, como explicou em artigo para o Justificando o Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Antônio Pedro Melchior. Em nota, seus advogados afirmaram que irão recorrer da decisão.
Em entrevista ao Justificando, Djamila Ribeiro, mestra em Filosofia Política e ativista pelas causas raciais, afirma que o que torna emblemático o caso Rafael Braga é “a questão de criminalizar os sujeitos negros. A quantidade de droga com que ele foi pego é extremamente pequena. Se fosse um rapaz branco de classe média, ele seria tido como um usuário e as pessoas teriam outra narrativa. E aí parece que como erraram da primeira vez e ficou muito evidente, eles querem justificar esse erro criminalizando ele de qualquer forma” e completou dizendo que “é o racismo que faz com que aconteça essa sucessão de arbitrariedades e que, inclusive, faz com que as pessoas não se mobilizem tanto”.
Em Quarto de Despejo, livro onde a escritora Carolina Maria de Jesus, mulher negra e catadora de papel narra em um diário o cotidiano como moradora da favela do Canindé em São Paulo, há, em 1958, uma passagem em que ela faz referência à criminalização do homem negro por parte da polícia:
…Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata?
Como forma de reação à condenação de Rafael Braga, movimentos como o Mães de Maio organizaram uma vigília em São Paulo, na noite de segunda-feira, 23. Durante o ato, o que não passou despercebido foi a falta de aderência que as manifestações puxadas pela Av. Paulista costumam ter. Para Joice Berth, feminista negra, arquiteta e pós-graduada em Direito Urbanístico, “o racismo está acima da questão política, a esquerda não tem interesse em engrossar as nossas vozes na luta pelas nossas pautas, porque, na verdade a esquerda é branca na sua massa e ela também tem privilégios e quer continuar a mantê-los.”
Questionada pelo Justificando o que torna o caso emblemático, Joice completou dizendo que:
No caso Rafael Braga, o que ficou mais nítido que foi um episódio de racismo, é que ele não estava na manifestação, as pessoas que foram presas com o argumento de estarem na manifestação já estão soltas há muito tempo… Então não é que ele é emblemático, e sim que ele é a gota d’água de um copo que já está transbordando há muito tempo. A gente não aguenta mais essa situação de pretos estarem sempre sendo aliciados como marginais… Logo em seguida inventam que ele estava com maconha, com cocaína, sendo que 0,6g de maconha qualquer playboy está agora na paulista fumando na frente da polícia.