Entre a espada e o precipício

José Heleno Santos – Sargento da PM, Secretário da Associação dos Praças.

A leitura do projeto do código de ética da PM e do Corpo de Bombeiros, em tramitação no Conselho Estadual de Segurança, me trouxe à memória uma cena histórica ocorrida durante a queda do Quilombo dos Palmares (1694), centro de liberdade e resistência dos negros massacrados pelo regime escravocrata.

Depois de conseguirem vencer a resistência dos guerreiros de Zumbi e subir a Serra da Barriga, os soldados de Domingos Jorge Velho encurralaram mulheres, velhos e crianças indefesas, que ficaram entre as espadas dos inimigos e o precipício da serra. Aqueles que não eram passados a fio de espada, se atiravam da montanha. Não havia saída, somente a chance de escolher como morrer. Assim me senti. Assim me identifiquei porque não há saída diante de uma lei injusta. A injustiça fere mais do que o fio de mil espadas. O projeto do Código de Ética, apresentado pela PM ao Conselho Estadual de Segurança Pública, é a maior expressão de que o equívoco histórico de se militarizar a Constituição Federal, cedo e tarde, acarretaria dor e sofrimento em face da possibilidade de dúbia interpretação da norma.

Em nenhum momento, absolutamente nenhum, a Constituição Federal autoriza que a norma infraconstitucional avilte direitos dos servidores militares que já não estejam preteridos na própria Norma Superior. Já bastam aos policiais e bombeiros militares – cuja função verdadeira é de natureza civil – as inexplicáveis limitações de cidadania previstas na Constituição: prisão administrada (mesmo em tempos de paz), proibição da sindicalização e da greve, incompletidão dos direitos políticos etc. No mais, a Constituição delega à lei infraconstitucional regular prerrogativas e outras situações especiais dos militares, desde que observadas as normas gerais. É aí que entram as interpretações equivocadas ou subjetivas.

Os regulamentos disciplinares sempre inseriram em suas normas muito mais limitações do que manda a Carta Política. O afã do poder do homem sobre o homem inspira regras de dominação. Como exemplo, o dito código prevê a prisão verbal por 72 horas no quartel, por conta de uma exceção do inciso XXI do artigo 5º da Carta Magna, que não excluiu, em qualquer hipótese, o direito ao devido processo legal, posto no inciso LXI do mesmo artigo.

O Estado brasileiro não autorizou nenhuma autoridade, civil ou militar, a restringir verbalmente a liberdade de outrem sem a ampla defesa, o contraditório e o processo legal. Ademais, o citado código proíbe a livre manifestação do pensamento, e, claro, do anonimato. Não há saída para o homem proibido de se expressar, por um lado, e proibido do anonimato, por outro. Não se pode impor ao ser pensante o castigo de não poder se expressar sem antes mutilar sua natureza, sem antes lhe atravessar na garganta a espada da lei injusta, até que morra sem um ruído de voz.

Finalmente, o código, além de trazer expressões misteriosas, estranhas ao Direito brasileiro, como “valores úteis e lógicos a valores espirituais superiores”, “verdade real” e “ânimo forte e fé na missão policial militar ou bombeiro militar”, afirma que são transgressões todas as ações ou omissões previstas como também as não previstas no código. Em resumo, o que não estiver na lei, mas for subjetivamente entendido como transgressão, serve como base para castigo. Na outra margem, a Constituição determina que o agente público só pode fazer o que está expressamente posto na lei, nada mais, nada menos. “Os quartéis não são ilhas onde a Constituição não vigora”.

Termino com a consciência de que, pela grande sensibilidade do Poder às críticas, ainda que construtivas, muitas espadas poderão ser apontadas para mim. Tenho esperança de encontrar abrigo em outros quilombos, principalmente nos guardiões do Estado Democrático de Direito, do contrário, me restará escolher entre as lâminas e o precipício às minhas costas. Pelo menos, será uma morte honrosa, com direito ao último grito de indignação.

 

Fonte: Alagoas

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