Entre o indizível e o narrável: Palavras possíveis para Yá Mukumbi, farol para as culturas negras – por Roseane Borges

“É surpreendente que se tenha tão pouco a dizer justamente a respeito de acontecimentos tão extremos. A linguagem humana foi inventada para outros fins.” 

Ruth Klüger

Enviado para o Portal Geledés

Se não há lugar no simbólico, não vai existir narrativa capaz de recobrir os acontecimentos humanos, restando apenas as marcas indeléveis da experiência traumática. Os assassinatos de dona Vilma Santos de Oliveira, 66, a sempre querida Yá Mukumbi, de sua mãe,  Alial de Oliveira dos Santos, 86, e neta, Olívia Santos de Oliveira,10, em uma investida psicótica de um vizinho no último sábado, 3, em Londrina, é um desses  terríveis episódios traumáticos que alojam-se além da capacidade de qualquer nomeação, das possibilidades de representação. As palavras resistem às tentativas de conferirmos sentido ao ocorrido e como toda experiência traumática, a perda brutal de Yá Mukumbi e parte de sua família deixam feridas abertas na memória coletiva e abrem um flanco para questionamentos irrespondíveis: Por que aconteceu? Por que elas? Como uma mulher da estatura de dona Vilma tem sua vida interrompida por um homem inteiramente tomado de surto psicótico, conforme atestou laudo médico? De onde vem desmedida loucura? Houve fundamento religioso no bárbaro ataque? Acrescente-se à tragédia na casa de mãe Vilma, o fato de que minutos antes, o assassino cometera uma outra, matando a própria mãe, num forte prenúncio de que quando se mata a própria mãe tudo o mais é possível.  Um crime só contra mulheres, velhas e nova, de quatro gerações, perpetrado por um homem em trajes menores de posse de uma faca.

Embora sucedam-se casos semelhantes ao ocorrido na Rua Olavo Bilac, no fatídico dia 3, o horror que cada história singular evoca é sempre sem par. Não existem parâmetros nem reincidências com os quais podemos nos apaziguar em termos narrativos. Comoção, perplexidade, dor, vazio, revolta, nos assaltam sem podermos sequer  acomodar o luto, que parece se arrastar indefinidamente. O que nos resta, então, num “cenário de terra arrasada”?   

Os estudos psicanalíticos nos ensinam que embora o trauma habite o campo do indizível, impõe-se a necessidade de se tecer uma narrativa do depois, um discurso que rearranje o que ficou fora de lugar, de se produzir um efeito de tempo, uma (res)significação do choque, a deflagração incontornável de um processo de reconstrução. Qual seria, então, a narrativa possível? Quais as possibilidades de representação do inominável? 

A vida plena, a vida digna, a vida austera sem ser pesada, a vida terna, a vida leve, a vida lúdica, a vida comprometida, a vida engajada, a vida vivida de Yá Mukumbi – uma vida desproporcional ao seu desfecho – nos restitui a possibilidade de contar uma história e construir memória sobre ela, sua mãe e neta.  

Mãe Vilma ou Yá Mukumby Alagangue, nome de origem quimbundo, movimentava-se sobre um largo espectro: zeladora do terreiro do Ylê Axé Ogum Mege, militante histórica do movimento negro de Londrina, mulher altiva, integrante de fóruns e associações locais e nacionais, coordenadora do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial, cantora de estirpe, dona de uma voz altissonante, mãe de seis filhos, cozinheira de mão cheia, gestora cultural e política dos expedientes da população negra, convicta defensora das cotas raciais para jovens negros nas universidades públicas (protagonizou a implantação das cotas na Universidade Estadual de Londrina, em 2005, e manteve-se fiel a luta ao engrossar as fileiras pela manutenção desta política, em 2011), generoso ser humano, diuturnamente atenta àqueles que vivem nas franjas da sociedade, construiu um biografia sólida, sagrou-se pessoa extraordinária, sempre pôs-se acima do banal. A densidade e força que lhe eram peculiar  renderam-lhe um livro “Yá Mukumbi: a vida de Vilma Santos de Oliveira”, escrita por professores e estudantes da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em 2010.

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Do lugar em que via o mundo, a partir de múltiplos prismas, não abriu mão de princípios éticos e de justiça para combater o racismo, o sexismo e a intolerância religiosa.  Do alto de sua sabedoria, sabia “converter” jovens para o combate contra a discriminação racial ofertando a eles possibilidades de tecerem um trajetória vinculada à ética, ao bem fazer e ao bem viver. Sempre pronta para as lides dos movimentos negros, deixava um lastro de esperança para aqueles que supunham estar tudo ou quase tudo perdido. Nunca se omitia frente às injustiças e problemas sociais e, habitualmente, se lançava de maneira proativa para equacionar os dramas de quem dela se aproximava. Crianças, para ela, era patrimônio de primeira linha; delas, costumava dizer, tínhamos o compromisso de cuidar.  O abate de sua neta de dez anos confere à tragédia, por esses e outros motivos, uma carga ainda mais brutal.

Consagrada figura pública, Yá Mukumbi prestou serviço para o Estado brasileiro, fez sua voz ecoar no ambiente acadêmico, desarmou teorias caducas para pensar a sociedade, atraiu a atenção de figuras públicas, como Gilberto Gil, que pediu-lhe artigo para uma publicação; mantinha vínculos afetivos com tantas outras, a exemplo de Dona Zica.  Inegavelmente, esta mestra fincou raízes para substantivas mudanças sociorraciais, ampliou o escopo das culturas negras, protegeu e salvaguardou o patrimônio africano no Paraná, construiu fronteiras para a manutenção das manifestações artísticas orientadas pelo protagonismo do negro, sem, contudo, erguer delimitações, tampouco promover distinções e exclusões. Direta e indiretamente, reorientou as políticas públicas no campo da cultura e da religião…

A Fundação Cultural Palmares (FCP) prestou-lhe singela homenagem em 2008. Na época, como agora,  sabia do alcance das práticas de Yá Mukumbi. Sente-se, como todos, imersa em uma experiência por ora dolorosa, em que o poder público se apequena com a perda de uma gestora cultural imprescindível. Mas, acredita-se: no horizonte do possível, torna-se compromisso  inadiável da FCP e outras instituições pinçar, do oceano de  iniciativas de Yá Mukumbi,  referências e práticas para a emancipação da sociedade, livre de racismos, sexismos, intolerância religiosa.  Entre o irrepresentável da tragédia e o narrável da esperança, fiquemos com esta última possibilidade, virtude que mãe Vilma sempre nos legou e continuará assim fazendo.

 

Rosane da Silva Borges

Coordenadora geral do CNIRC (Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra)/ Fundação Cultural Palmares/Minc

Professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL)

 

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