Entrevista com Raull Santiago: A violência nas favelas brasileiras

Conteúdo publicado originalmente na revista I Amnesty, da Anistia Internacional Itália
 
Por Laura Renzi, da Anistia Internacional
 
Imagem retirada do site Anistia Internacional

Raull Santiago é um defensor dos direitos humanos no Rio de Janeiro. Em março de 2014, co-fundou o Coletivo Papo Reto, um coletivo de comunicação independente que documenta a vida no Complexo do Alemão. A intenção do grupo é chamar a atenção para o que está acontecendo na favela, destacando a violência policial e outros abusos dos direitos humanos que muitas vezes são ignorados pela mídia.

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Como é a vida na favela?

A sociedade brasileira considera pessoas que vivem em favelas inferiores. A discriminação é forte e está presente em todo o país: no ano passado, 60 mil pessoas foram mortas e, destas, 70% eram pretas ou pardas. A população carcerária do Brasil é a maior do mundo: a maioria dos presos são negros e pobres, encarcerados sob o pretexto da guerra às drogas. O Complexo do Alemão é uma favela com cerca de 70 mil habitantes, localizada na zona norte do Rio de Janeiro. Se você nasceu por lá, dificilmente vai se mudar. As pessoas trabalham duro para receber salários muito baixos, a educação é precária e o saneamento básico é muito deficiente. Nos últimos anos, a situação melhorou um pouco, mas ainda há esgotos a céu aberto e pessoas morando em casas de madeira sem nenhum tipo de tubulação. Os moradores da favela saem pela manhã cedo para ir trabalhar e voltam muito tarde; quando ligam a televisão, a favela que veem é sempre um lugar onde pessoas inferiores vivem, diminuindo sua autoestima. É difícil mudar essa visão na sociedade brasileira. É importante mostrar que na favela não há apenas traficantes de drogas e que as pessoas que moram lá têm a mesma dignidade da população branca e rica do resto do Brasil.

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Qual é a situação dentro do Complexo do Alemão?

Na favela há uma presença policial muito grande devido à guerra às drogas. Eles usam carros blindados para entrar, em que são montadas armas que podem disparar a 360 graus – conhecido como “Caveirão”. Entre janeiro e agosto de 2017, a polícia matou 712 pessoas no Rio de Janeiro e, a maioria delas, nas favelas. Na maior parte dos casos, nenhuma investigação foi aberta para identificar os responsáveis. Quando “uma pessoa da favela está morta”, a polícia declara que não foi intencional. A falta de interesse na vida das pessoas que vivem nas favelas pelo governo é, em parte, causa e consequência da violência em andamento. Na favela é possível encontrar as mais diversas armas utilizadas no tráfico de drogas, que vêm diretamente do mundo da corrupção; você pode ver uma criança com uma arma na mão, e a coisa surpreendente é que esta criança nunca está fora da favela e talvez nunca saia dela, enquanto a arma que ela segura chegou depois de uma longa jornada a partir de algum país distante no mundo. Nossa realidade é tão dura que a arma entra, mas a criança não pode sair.

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Que atividades o Coletivo Papo Reto realiza?

Papo Reto tenta fornecer informações e dados sobre violência dentro da favela que não são divulgados pela mídia convencional. Desenvolvemos tecnologias digitais e colaboramos com advogados e associações nacionais e internacionais (como Witness, Anistia Internacional e Front Line Defenders) e, graças ao nosso conhecimento de nosso território, ativamos uma estrutura de monitoramento da violência dentro da favela, por exemplo, que contraria a narrativa do governo que nos vê todos como criminosos. Graças à Internet, criamos nosso próprio canal de comunicação, através do qual, com os celulares, podemos transmitir conteúdo audiovisual. Vamos às ruas para fotografar e registrar a violência, para mostrar que as mortes não são “não intencionais”, como alegam a polícia e o governo. Em 2015, conseguimos flagrar uma ação violenta da polícia contra uma criança. Nosso grupo conseguiu registrar a ação e denunciá-la. Apesar disso, a justiça brasileira não nos levou em consideração, argumentando que a fotografia poderia ter sido feita em outro lugar, fora da favela. Witness nos ajudou a fortalecer nossos registros. Com eles, desenvolvemos um aplicativo que, durante a aquisição de fotos e áudio, permite gravar outras informações (localização geográfica e outros metadados) – informação útil para identificar quando e onde a foto foi tirada. Graças a isso, conseguimos provar que o assassinato da criança aconteceu na favela. Imediatamente tivemos visibilidade e parte da imprensa passou a nos ver de forma diferente. Estamos estudando melhor o fenômeno da guerra às drogas e estamos percebendo que há um preconceito contra a população pobre brasileira que vive nas favelas, que muitos consideram que fazem parte do tráfico de drogas. Um passo à frente que fizemos com nosso trabalho foi conectar o Complexo do Alemão com as outras favelas de São Paulo e do Rio de Janeiro, para criar dentro delas outros grupos de comunicação independente. Estamos estudando estratégias implementadas por outros países para combater a guerra às drogas sem usar armas e violência.

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