Entrevista exclusiva com Criolo: ‘Fomos criados em uma sociedade onde vendem a mentira de que não somos capazes de nada’

14/05/16

Após uma década, o rapper Criolo lança a regravação de seu primeiro álbum, Ainda Há Tempo. O projeto reúne nomes como Cabral Nave, Sala 70, Grou, Deryck Cabrera, Sem Graça, Papatinho, Tropkillaz, Daniel Ganjaman, Marcelo Cabral e o MC Rael. Em entrevista exclusiva ao Portal Geledés, o artista falou sobre música, cultura, genocídio da juventude negra, política e a importância da periferia.

Por Natália Sena para o Portal Geledés

PG: Criolo, primeiro eu gostaria que você falasse um pouquinho sobre o relançamento do Ainda Há Tempo. Por que você sentiu a necessidade de relançar algo antigo e não criar um álbum novo? Também queria que comentasse se existe diferença entre suas músicas do começo da carreira e as de hoje. No álbum Convoque Seu Buda, por exemplo, percebo um discurso mais amadurecido, enquanto no Ainda Há Tempo noto um disco de protesto, da realidade da zona sul de São Paulo.

Criolo: Eu e o Dandan acalentávamos o sonho de um dia fazer um show do Ainda Há Tempo, que nunca aconteceu. Só que, assim que fechamos o disco, a master sumiu e ninguém conseguiu achar. Tudo surgiu da vontade de comemorar os dez anos do primeiro trabalho.

O Ganja teve a ideia de convidar vários beatmakers e produtores para recriar esse momento. Achei maravilhoso, porque me lembrou como era no início: eu ia nas quebradas visitar os produtores, mostrava uma letra ou pedia um beat e dali nasciam músicas. Assim surgiu o Ainda Há Tempo.

O Convoque Seu Buda vem do meu berço no rap, mas também de um caminho recente que começou com o Nó na Orelha: a experiência de cantar com uma banda, gravar com músicos de diferentes estilos. No Convoque, além de Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral na direção, tivemos a colaboração de muitos músicos na construção sonora.

O Ainda Há Tempo é um reflexo de energias acumuladas: ideias de 2001, composições escritas em 1997, músicas que só foram gravadas em 2006. Algumas canções que entraram no Nó na Orelha já existiam anos antes. É um conjunto de tempos diferentes se encontrando, sem regra, e isso aparece tanto no som quanto nas letras.

PG: Você precisou mudar alguma letra neste álbum?

Criolo: Sim. Muitas coisas foram modificadas porque aprendi que palavras carregam dores. Disse isso recentemente ao Catraca Livre e ao Rap Nacional: quantas vezes a gente reproduz termos sem refletir sobre sua origem? É resquício de colonialismo.

O Dandan me alertou há 20 anos sobre o uso da palavra denegrir. Ele me explicou o peso que isso tinha, e eu percebi: “Por que não mudar? Em que atrapalha? Só soma.”

A arte é maior que o artista. Se em algum momento usei uma expressão que magoou, reconheço: foi ignorância minha. Por exemplo, quando escrevi “Se o demônio usa saia, valorize sua mina”, a intenção era outra, mas depois entendi que reforçava a satanização da imagem da mulher. Esses detalhes fazem toda a diferença.

A gente aprende não tendo medo de ouvir críticas, de dialogar, de permitir que alguém nos diga a real.

PG: Por que você disponibiliza o álbum para download gratuito?

Criolo: Isso vem da nossa cultura no rap. Sempre tivemos a felicidade de compartilhar uma fita com os amigos, esperar meses para ouvir a opinião deles. Depois vieram os CDs, os CDRs, e em seguida a internet. Íamos para lan houses baixar beats, assistir documentários, mandar sons por e-mail.

Então, disponibilizar o trabalho na rede é natural. Não é porque está online que todo mundo vai ouvir. A vida das pessoas é cheia de demandas. Mas só de saber que alguém pode escutar seu som, isso já é especial.

Para mim e para minha equipe, essa possibilidade de comunicação é muito valiosa.

PG: O Criolo da favela das Imbuías imaginava cantar fora do país para milhares de pessoas?

Criolo: Nossa, eu já fiquei feliz da vida quando ouvi minha música tocar no Balanço Rap, na 105 FM. Era um programa de cinco horas de rap! O amor pela música é eterno. Cada aprendizado, cada sotaque, cada bagagem cultural recebida no caminho soma muito. É esse processo que me trouxe até aqui.PG: Você descobriu a arte e as rimas na periferia. Hoje, muitas pessoas continuam aprendendo em saraus e espaços comunitários. Qual é a importância da periferia produzir cultura dentro do próprio território e também de outros reconhecerem essa produção sem marginalizar?

Criolo: É fundamental. Desde cedo precisamos sentir que somos capazes de construir algo. Quando vi um amigo rimando, achei incrível. Mas o rap chegou de verdade quando ouvi uma música de sete minutos em que tudo rimava. O locutor disse: “Isso é rap.” Falava da quebrada, não da minha, mas parecia que falava para mim.

Pensei: “Se esse irmão fez, eu também posso.” Porque crescemos numa sociedade que nos ensina que não somos capazes de nada, que seremos apenas serviçais. A arte mostra o contrário: que somos humanos, que podemos sonhar e criar.

No Grajaú, por exemplo, o Xemalami ensina xadrez com reflexões sociais. O Pagode da 27 nasceu de meninos tocando na rua e hoje valoriza compositores das quebradas há mais de dez anos. Projetos como o Imargem trazem reflexão sobre mananciais e a vida às margens da cidade.

Cada ação cultural, grande ou pequena, fortalece nossa autoestima e mostra aos jovens que eles são capazes de transformar. Isso é libertação.

PG: O genocídio do jovem negro é uma realidade que atravessou sua vida?

Criolo: Sempre. Não é teoria, é vivência. Nós, da quebrada, vimos tudo: armas, drogas, abandono social, ódio. Tudo jogado sobre nós como ferramentas de autodestruição.

Mas resistimos. Estudamos, mostramos nosso potencial, entramos nas universidades. E eles sucateiam as escolas, humilham professores. Mesmo assim, seguimos em frente.

Hoje mais pessoas têm contato com essa realidade, e muitas ficam horrorizadas. Eu também fico, como no caso da menina espancada só pela roupa que usava. Mas precisamos transformar esse choque em energia positiva, em luta. Porque tem coisas que não podemos aceitar. Nosso povo é lindo.

PG: O rap ajudou a dar visibilidade a essa realidade?

Criolo: Muito. O mérito é dos mestres que começaram tudo: DJs, MCs, todos que abriram espaço para o hip hop. Sempre dissemos: “Tem algo errado acontecendo aqui.” O rap é esse alerta.

PG: Como você enxerga o cenário político atual?

Criolo: É difícil prever. O que vemos é uma guerra de interesses que não melhoram a vida do povo. Mas ao mesmo tempo, vejo jovens se articulando de várias formas, e isso faz a diferença. Para nós, nunca foi fácil. Desde que as caravelas chegaram, eles têm o poder. Mas seguimos resistindo.

PG: O que há na sua música que consegue ir além da periferia?

Criolo: A música não pede CEP. A arte é isso: não pede licença. Ela ensina, toca, atravessa fronteiras.

PG: Muitas pessoas que estão começando enviam material ao Portal Geledés para divulgação. O que você diria a elas?

Criolo: Façam com verdade, com coração. Um dia, isso vai chegar nas pessoas.

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Confira o álbum Ainda Há Tempo completo:

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