Epistemologias periféricas

Allan da Rosa e Dinha, dois poetas das quebradas, com doutorado na USP, mas que não se transformaram em eruditos de aquário. Eles apostam na poesia sofisticada, mas acessível, forjada na “teoria suada” da ação política e nos saberes do Nordeste e da África

FONTEPor Eleilson Leite, do Outras Palavras
Banho de Esperança, de Paulo Chavonga

Compartilho neste texto, a releitura que fiz dos livros de estreia de Allan da Rosa, Vão (2005) e o de Dinha, De passagem mas não a passeio (2006), ambos publicados pela Edições Toró, sendo que o livro da Dinha teve uma edição pela Global Editora em 2008. Os autores guardam entre si importantes semelhanças. Ambos são da periferia da Zona Sul: Allan, de Americanópolis/Jabaquara (depois Taboão da Serra) e Dinha do Jardim São Savério/ Parque Bristol (Fundão do Ipiranga). Os dois debutaram como poetas no Sarau da Cooperifa. Nascidos no final da década de 1970, são da mesma geração. São ativistas culturais, educadores e editores, além de viverem a paternidade e a maternidade com intensidade e encantamento.

Mas a semelhança que destaco aqui é a carreira acadêmica dos dois. Allan e Dinha fizeram graduação, mestrado e doutorado na USP1. Ingressar naquela universidade já era inusitado tendo em vista a origem social de ambos, mais improvável ainda foi chegar até o topo da formação universitária. Uma universidade de ponta já não é tão inacessível aos jovens de periferia atualmente, graças às políticas de ampliação de acesso que o Brasil teve num passado bem recente, mas para os autores aqui analisados foi algo muito mais complicado. Na geração deles, são pouquíssimos os escritores que cumpriram todo o itinerário acadêmico. Mas, tendo chegado à USP, ambos não ficaram restritos ao cânone eurocentrista que predomina na “fefeleche”. Allan e Dinha souberam hackear o conhecimento proporcionado pela universidade e criaram suas próprias epistemologias inspiradas na sabedoria popular ancestral, cósmica e enraizada na quebrada.

Vão

Foto: Imagem retirada do site Outras Palavras

A estreia editorial de Allan da Rosa se deu no Ato III da Literatura Marginal/Caros Amigos em 2004. Naquela edição publicou um texto ensaístico sobre a formação da Cidade de São Paulo no qual explica o surgimento dos bairros de periferia. Ou seja, Allan debutou não como poeta ou contista, mas como historiador que já era na ocasião em que publicou o ensaio. Naquele mesmo ano aparece como um dos autores da antologia do Sarau da Cooperifa, Rastilho de Pólvora. Frequentador daquele sarau desde os tempos de Taboão da Serra, Allan também participou da antologia sonora da Cooperifa com o poema Precisão. Em 2005 participou da Coletânea Literatura Marginal – talentos da escrita periférica, organizada por Ferréz para a Editora Agir. Para aquele livro Allan colaborou com dois contos inéditos: Chão e Pérola.

Na primavera de 2005, Allan publicou Vão, obra que já estava pronta há alguns anos. Para finalmente viabilizar seu projeto editorial, ele criou seu próprio selo, a Edições Toró, empreendimento que durou cerca sete anos e publicou 20 títulos. Com o apoio da ONG Ação Educativa e do Programa VAI, da Prefeitura de São Paulo, Allan pode fazer o livro da sua maneira: semiartesanal. Imprimiu o miolo e a capa em gráfica e os encadernou numa costura com fios de lã vermelho, um por um. A diagramação também não é convencional. O livro é escrito com uma fonte idêntica à caligrafia manual, fora dos padrões existentes à disposição nos softwares, seguindo a letra de Silvio Diogo que também faz as ilustrações. Já os títulos são escritos na forma de pixo, valorizando essa caligrafia urbana e marginal. Poeta de prestígio no circuito de saraus, Allan fez do lançamento de seu livro um grande acontecimento, convocando os parceiros para o que ele chamou de I Encontro da Literatura Periférica, realizado na sede da Ação Educativa. Vão permaneceu por sete anos como seu único livro de poesia até que em 2012 lançou, em parceria com a bailarina e poeta Priscila Preta, o livro A Calimba e a Flauta, também pela Edições Toró, em coedição com a Capulanas Cia de Arte Negra.

No intervalo entre esses dois livros, Allan publicou cinco poemas no volume 29 do Cadernos Negros em 2006 e no mesmo ano lançou pela Edições Toró, Da Cabula, dramaturgia que teve uma reedição pela Global Editora na Coleção Literatura Periférica em 2008, ano em que publicou em parceria com o fotógrafo Guma o livro Morada. No ano anterior saiu pela editora DCL livro infanto-juvenil Zagaia (um romance na forma de cordel com os versos organizados em sextilhas e ilustrações do prestigiado Marcelo D’Salete). O livro de contos Reza de Mãe (NOZ, 2016) e o infantil Zumbi assombra quem? (NOZ, 2017) são seus títulos mais recentes. Allan da Rosa, juntamente com Sacolinha, são os dois únicos escritores negros da literatura periférica paulistana que têm verbete na Antologia Literatura e Afrodescendência no Brasil, obra em quatro volumes publicada pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais no ano de 2011.

Vão reúne 57 poemas que estão agrupados em dois capítulos: Conduítes e Vão. Entre um e outro há um texto em prosa chamado O barco. O texto da primeira orelha traz uma minibiografia do poeta que informa sua trajetória profissional, indicando que foi “feirante, office boy, operário de indústria plástica, vendedor de incensos, livros, churros, seguros e jazigo de cemitério”. Relata que, por meio do cursinho do Núcleo de Consciência Negra, da USP, conseguiu passar no vestibular para História naquela Universidade. A outra orelha é assinada por Sergio Vaz que exalta: “Allan da Rosa brinca com seus versos de mãos dadas com a consciência necessária para o fortalecimento da cultura popular”.

Frequentador de saraus, as performances do autor nos recitais periféricos ajudam o leitor a assimilar sua poética que aborda temas que fazem parte do cotidiano dos seus leitores como o poema Desbicando no qual faz uso da pipa como metáfora para falar de uma coletividade da qual pertence, como fica evidente nos versos: “Tirando laça com o futuro/somos pipas voando nos ventos do ontem/ com as linhas cortantes do presente. Creio que, sendo pipas, podem-se alçar voos e com isso disputar o futuro (tirar laça, significa a luta das pipas, de quem as manipulam, uma querendo cortar a outra). O voo é assegurado pelos ventos do ontem, ou seja, pela história, a ancestralidade afro, pois, o elemento da negritude é um traço importante na poética de Allan. Com esse vento consistente do passado, a coletividade mira o futuro com “as linhas cortantes do presente”, que seriam os instrumentos de luta dessa coletividade para tirar laça e desafiar o que vem pela frente. Dada a atuação de Allan com a educação de adultos, pode–se deduzir que uma “linha cortante” seria a escrita.

Allan cria uma sintaxe própria que contém elementos da fala urbana característica das áreas periféricas, onde se “desbicam pipas”, dos dialetos africanos (“mocambo literário”) e da norma culta (“sumariando a brevidade do contrato”). Com isso elabora uma estética própria, com a qual constrói sua poesia e prosa. Na abertura do livro apresenta um poema manifesto chamado Licença, composição sintética e direta que destoa da complexidade formal adotada pelo autor em outros poemas: “Peço licença para versar/Rimar a dor/Rimar carinho/Sou guerreiro da palavra/Nesse chão de tanto espinho/Passarinho quer voar/ Mas também gosta de ninho. Ele anuncia no poema que tratará da dor e do amor. Entretanto, no poema, Danação, o último do livro, ele alerta o leitor do quanto a poesia que lhe é ofertada no livro é insuficiente para compreender a alma do poeta: “Quem lê meus poemas/ Conhece apenas uma ou duas frestas/ da minha poesia. Não conhece meus fantasmas/meu sal/meu chão/ Quem lê meus poemas/ não conhece minha ginga/meu amor/minha larica/nem o meu mais nojento.

Nesse diapasão de anúncio e retração, Allan da Rosa aborda o futebol de várzea, a visita ao pai na prisão, a violência policial contra os negros, o massacre de Corumbiara e a sua própria poesia. Sobre a periferia, ele escreve no poema Tabuleiro: “Periferia: vasto tabuleiro podre de peças reluzentes”. Este verso é representativo de como o poeta vê as bordas da metrópole. Sua afirmação de pertencimento sempre foi crítica, porque nunca viu a periferia como um lugar idealizado. Allan consegue expressar seu gosto e desgosto com o que vê nos becos e vielas, expresso também no poema Fronteira: “Quebrada/Intocada/Zuada/Entocada/No transborde/ Preparando o bote”.

Um dos temas mais recorrente nos poemas de Allan da Rosa é o amor. Ele cria uma musa a qual destina três poemas, dois com o título de Lu e um terceiro intitulado Luciane. No primeiro predomina o tom de exaltação: “Você é letra de lápis/ Pêssego de incenso/Criança desprevenida/ Futuro de toda flor/Doce de milho. No segundo, da sedução: “Aconchegar teu grito, teu descanso/ teu cheiro, tua lágrima/ tuas conchas da alma/teu querer a hora. No terceiro, acentua o encantamento para além do desejo que lhe consome: “Todo ousado momento/ em que bebo/ o vinho dos teus olhos sutis/ perpasso nele um silencio/ que ludicamente me diz/ brincantes verbos sábios. Nesses poemas, Allan da Rosa se esmera no virtuosismo, revelando que na poética do “guerreiro da palavra”, também há espaço para devaneios amorosos. Assim, a obra de Allan da Rosa acaba por reforçar a percepção já explorada em artigos anteriores do quanto a literatura periférica se distancia da literatura hip hop (ou marginal) quando o assunto é o amor entre um homem e uma mulher.

De passagem mas não a passeio

Foto: Imagem retirada do site Outras Palavras

Maria Nilda de Carvalho Mota, a Dinha, nasceu em Milagres, Ceará, em 1979, e para São Paulo veio com a família quando tinha um ano e meio de idade. Morou em favela na Zona Sul juntamente com os pais e sete irmãos, sempre na Região do Parque Bristol, Heliópolis e Jardim São Savério, periferia da Zona Sul de São Paulo, próximo à divisa da Cidade de Diadema. Ingressou no curso de Letras da USP, passou a militar no movimento hip hop e participou da criação da Posse Poder e Revolução por meio da qual realiza até os dias de hoje ações de promoção da leitura, gerindo o Maloca Espaço Cultural, onde organiza e mantém uma biblioteca comunitária. Concluiu mestrado (2011)2 e doutorado em 20173, ambos na USP e está fazendo um pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros, o IEB, na mesma universidade. Nos últimos quatro anos ela tem atuado como editora da Edições Me Parió Revolução por meio da qual publica seus livros, cujo projeto editorial remete ao da Edições Toró que lhe abriu o caminho para sua bem-sucedida carreira literária.

A primeira edição de De passagem mas não a passeio segue um padrão gráfico da Edições Toró: escrito à mão, fartamente ilustrado e na lombada há a aplicação de um tecido de chita, remetendo à origem nordestina da autora. Dinha reuniu 77 poemas que estão distribuídos em sete capítulos, seis deles tendo como abertura um poema denominado “Anúncio”, seguindo a numeração de cada capítulo: anúncio I, anúncio II, e assim por diante. O penúltimo capítulo, no entanto, há uma sutileza, pois tem como abertura um poema chamado “Anunciação.

Para comentar a leitura, farei menção não só a essa primeira edição, mas também a reedição da Global Editora, publicada em 2008, pois há distinções relevantes, para além do mais aparente que é o projeto gráfico. Na biografia apresentada na primeira edição, a autora indica seu codinome Mila Kiggy, a mulher dos muitos nomes, se diz mãe de Katrine e “representante da literatura produzida nas periferias Brasil afora”. Já na edição da Global, ela se declara “feliz e casada, mãe de duas meninas”. Os textos da orelha também são muito distintos de uma edição para a outra. Assinada por Allan da Rosa, a apresentação de 2006 fala de uma escritora que passou pela “ilha universitária, mas não perdeu a gana. Acumulou bagagem e manteve seu arsenal aceso”.

Na apreciação de Allan, Dinha extrapola a temática periférica e desvenda as armadilhas que iludem o povo do subúrbio. Afirma que a autora quer “mirar o cosmos, mas tem que se render à obrigação da realidade encapuzada: muro esburacado”. Já na edição da Global, a mesma a orelha é assinada pelo escritor e historiador Marco Ferrari num texto que discorre sobre os aspectos formais da escrita de Dinha: “poesia moderna, sem rima, em dissonância e em livre geometria. Sem parecer estereótipo de enquadramento fácil onde pode caber o verso sem regras, mascarando a mais brilhante inspiração, com o próprio talento de mãos atadas”.

No intervalo entre uma edição e outra, pouco mais de dois anos, Dinha mudou. Ela se retraiu, não saiu mais de sua comunidade, dedicando-se à família, mantendo apenas sua atividade acadêmica, o magistério e a militância no bairro. Não apareceu mais no Sarau da Cooperifa e em nenhum outro sarau, ou evento, seja debate, performance ou palestra. Sequer a edição nova de seu livro ela promoveu e deixou de participar de uma mesa da Bienal do Livro de São Paulo em 2008 da qual participaram os demais autores publicados até então na Coleção Literatura Periférica da Global Editora: Sergio Vaz, Alessandro Buzo, Allan da Rosa e Sacolinha.

Talvez essa sua nova postura explique o fato de ela ter retirado dois poemas da edição original do livro: Que Eu Não Sou Hipócrita e Eco, substituídos na edição de 2008 por Rainha Nunca Fui Autorretrato Dela. Os dois poemas excluídos integram o primeiro capítulo intitulado Poemas De Quem Sou, justamente aquele que reúne os poemas que exploram seu universo mais íntimo. Que Eu Não Sou Hipócrita ela descarrega sua metralhadora cheia de mágoa já na primeira estrofe: “Graças a Deus (ou ao diabo)/ vou fazer muita besteira!/ vou amar o homem errado/ e vou dar pro cara certo/ Ou o contrário/ Graças a Deus (ou ao diabo)!. Na última parte do poema, a munição ainda é farta: “Graças a Deus/ que eu não valho um centavo/ e se me enchem muito o saco/ mando à casa do caralho/ graças a Deus (ou ao diabo). Já o poema Eco tem um tom mais reflexivo e confessional sem deixar de ser contundente: “Uma metade é carne/ e arde/ em desejos obscenos/ outra parte é alma/ é calma/ e sofre amores indevidos, dizem seus primeiros versos e o poema termina assim: “E por ser última/ – a puta – luta/ por isso é forte/ Tem sorte. Pode/ correr perigos, desafiar virtudes/ Que iludem/ E são só partes da moral. A ausência de tais poemas na reedição do livro faz da primeira edição uma raridade ainda mais valorizada.

Dinha conseguiu organizar bem seus poemas em subconjuntos ordenados por temática, sem criar compartimentos fechados, podendo os versos transitarem conforme a percepção e o desejo do leitor. Essa organização deu uma unidade muito interessante à obra, aspecto ressaltado pela atriz e poeta Elisa Lucinda no texto de apresentação da edição da Global Editora. No segundo capítulo Antologia de Vivos e Mortos ou a Família Estendida, o momento mais forte é o poema De Aqui De Dentro Da Guerra, um dos mais conhecidos da autora até hoje. Nele, Dinha aborda o assassinato de seu irmão: “Ouvi os tiros mas não dei ouvidos. /Morreu alguém. Não fui ver./É comum. Era só isso. /De uma festa, cantei, dancei, ri/(e isso não é força poética de quem imita poesia e põe verbos em paralelismos)./ Ri muito a noite toda./Terminou de madrugada/ os tiros subindo a escada: – Dinha, mataram Francisco.” Mas é apenas neste poema que este tipo de violência aparece assim explicitamente. Nele, a autora expressa o drama pessoal com um vigor poético que faz da composição um clássico da literatura periférica: “De aqui, de dentro da guerra/ qualquer tropeço é motivo/ A morte te olha nos olhos/ te chama, te atrai, te cobiça./ De aqui de dentro da guerra,/ não tem DIU nem camisinha/ que te proteja da estúpida reprodução/ da fome, da miséria. Da íntima estrutura/ que abafa o cantar das favelas/ – antigas senzalas modernas -/ cemitério geral das pessoas”.

O capítulo seguinte tem o sugestivo título de “Self-Servisse Romântico. Destaca-se entre os poemas desta parte do livro o tema do sexo, tratado com requinte e delicadeza como nos versos de Carpe diem – ou a educação pelo corpo: “E foi a juventude – abertas as pernas – / mil instantes de caju e cólera, / de lições aprendidas com o corpo, / e Amor e Poesia e Sexo.” No poema Baladinha do Amor Vampiro, o eu lírico é lascivo: “Preciso do teu sexo/ como seta/ atingindo o alvo/ como estaca/ abolindo a Vamp./ Quero te sugar”. Parafraseando Manuel Bandeira, encerra o capítulo com um poema intitulado Vou-me embora pra Pasárgada no qual exalta sua condição de mulher em face do amor desejado: “Mas se você me der amor/ eu não vou querer migalhas. / Vou querer o pão inteiro/ a faca e o queijo”.

anúncio III – Eu prometo falar de amor é o capítulo maior, com 15 poemas sobre amor, sexo, segredos da alma de mulher dispersos em versos bem elaborados como em Poeminha Cansado: “do egoísmo ao orgasmo/ eu te faço/um poema cansado/ para falar de amor. No poema Vermelho, segue a mesma toada: “Um poema egoísta/ que inclua a tua vida/ em minha vida/ em minha rima/em minha sina. Com esmero se entrega, em Canção lírica de te convencer: “Vem/ que a noite é estranheza/ e, na torre, a princesa/ acabou de se jogar no qual faz um duplo sentido: jogar-se “na torre” e não “da torre”.

No anúncio IV – Poemas de Cidade Grande, Dinha desloca sua poesia para o contexto urbano. São 13 poemas que revelam o caos e o desespero de uma metrópole desigual, desumana e, ainda assim, fascinante. Uma cidade observada da janela do ônibus, ponto privilegiado de visão, estando ela parada enquanto o carro se movimenta, como sugere o poema em prosa Os cegos: “O ônibus segue seu curso: é parte de rabo de luz, gasolina e fumaça: constelação de estrelas melancólicas e mecânicas. Cidade.” Os poemas deste capítulo têm essa dinâmica além de serem noturnos. A noite estimula a criatividade da poeta: “É de noite que se vê melhor/ esse sangue de neón dos carros ( …) “Outra noite de cidade se aproxima/ sem a lua para refletir teu sol./ Quase nada é minha vida assim sozinha/ esquecida entre pedestres e faróis”; “Os faróis dos carros:/glóbulos vermelhos/ infectados de escárnio/ circulando nas artérias da cidade” (Poeminha sarcástico)

O penúltimo capítulo não tem anúncio, tem anunciação e a poeta retoma seu arsenal de mágoas destiladas em versos dilacerantes: “Juntei minha frustração/ e amontoei neste poema/ Pra tentar elucidar/ a picaretice humana (Nada). Já o derradeiro capítulo é melancólico. A poeta parece resignada, sentimento acentuado pelo título que denomina esta parte do livro: Disque renúncia – ou Poética da desistência. Ela queixa-se da sociedade dominada pela tecnologia digital no poema Anúncio V. Faz um antimanifesto com o poema que dá subtítulo ao capítulo: “Quero versos sem protestos/ versos sem remédio/versos sem salvação/Quero rimas contidas/ rimas aflitas/ rimas em ão/ Que é pra compensar que a vida/ entre o escarro e a lambida/ seja lodo e ilusão”.

Doutores da Periferia

A poesia de Dinha e de Allan da Rosa tem CEP e lugar de fala, porém sua temática é ampla. De passagem mas não a passeio e Vão são obras que se lê dentro e fora do contexto da periferia de São Paulo. É uma poesia sofisticada e erudita, mas acessível. Como foi dito, os autores cursaram na USP a graduação, mestrado, doutorado e a Dinha está no pós-doutorado. A obra de ambos expressa uma consistência que denota o esmero de quem tem muito estudo na bagagem.

Mas a carreira acadêmica não fez de Allan e Dinha “eruditos de aquário”, como diz o poeta Sergio Vaz no Manifesto da Antropofagia Periférica. Ambos souberam apreender o conhecimento acadêmico uspiano tão rigoroso quanto elitista, e elaboraram suas próprias epistemologias lastreadas nos saberes do povo periférico, do Nordeste e de África. Formularam uma “teoria suada”, como diz Allan. Eles se tornaram intelectuais orgânicos, mantendo-se em suas comunidades nos arrabaldes da metrópole. Dedicaram-se à educação de jovens e adultos e a promoção da leitura, além da atividade editorial, seja publicando seus próprios livros ou de outros autores e autoras de quebrada.

Com graduação em História, Allan fez sua pós-graduação na Pedagogia e criou sua Pedagoginga4. Dinha seguiu nas Letras do bachalerado ao doutorado e estudou a poesia africana, incluindo o RAP. A erudição de ambos se reflete em seus poemas já nos livros de estreia aqui comentados, publicados quando ainda eram apenas graduados e repercutiu nas obras posteriores. Mas, como vimos, não há pedantismo ou firula academicista na escrita desses autores. Mas há uma originalidade no texto que dá um acabamento poético à fala dos “de baixo, dos que esperam há séculos na fila da história (…)”, como diz Eduardo Galeano (A dignidade da arte/ O livro dos abraços), citado como epígrafe do livro Vão. Allan e Dinha são autores, cuja obra revela uma estética com textura e densidade próprias da periferia.

1 Allan da Rosa defenderá seu doutorado no final de junho. Dinha concluiu em 2017.

2 A dissertação de mestrado de Dinha chama-se “Lirismo de Libertação: uma leitura de poemas africanos e afro-brasileiros”, defendida em 2011 na FFLCH/USP sob orientação da professora Vima Lia de Rossi Martin.

3 Doutorado em Letras, 2017 na FFLCH/USP Título: João Cabral e José Craveirinha: literatura contra a desumanização. Tese também orientada por Vilma Lia de Rossi Martim.

4 Refiro-me ao livro Pedagoginga, autonomia e mocambagem, publicado em 2013 pela Aeroplano Editorial, obra na qual sistematiza um conjunto de cursos de formação, uma prática de Educação Popular desenvolvida entre 2009 e 2012. O livro foi relançado em 2020 pela Editora Jandira.

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