Era uma vez, em Irajá

A recomendação de uma professora mudou o destino de uma aluna promissora, num ensino público desigual desde sempre

Por FLÁVIA OLIVEIRA, do  O Globo 

Foto: Marta Azevedo

A vida toda, estudei em escola pública. Primeiro, municipais (ensino fundamental); depois, federais (níveis médio e superior). Sou, portanto, produto da educação que governos foram capazes de oferecer. Cresci em Irajá, subúrbio do Rio. Era filha única por parte de mãe. Ela trabalhava fora, no Centro da cidade, a meia Avenida Brasil de distância. Quando meu pai ainda morava conosco e tinha emprego, eu tive uma cuidadora. Ela era solteira e não tinha filhos; morava na Pavuna com uma sobrinha; falava com sotaque do interior. Tia Palmira, era assim que a chamávamos, era uma idosa analfabeta, a quem tentei ensinar o beabá com uma cartilha amassada. Muito mais tarde, descobri que, nos anos 1970, seis em cada dez mulheres pretas do Brasil não sabiam ler nem escrever.

Tia Palmira morria de medo de assombração; quando trovejava, cobria os espelhos. Mas o pior pavor dela era me perder. Por isso, um dia escondeu a chave dentro da lata de arroz. E esqueceu. Meu pai chegou e não conseguia entrar em casa. Quando o enredo acabou, Tia Palmira estava demitida. Ele, furioso, justificava: “Minha filha não é prisioneira”. Até hoje, lembro dela caminhando pela Rua Jaçanã e eu chorando na janela da sala, vendo minha companheira se afastar. (Só a reencontrei anos depois, em visitas esporádicas.)

Não tardou muito para o meu pai também ir embora. Tornei-me, então, filha única de mãe largada do marido, cochichavam as línguas maldosas. Minha mãe acordava às 4h da manhã para cozinhar e lavar roupa. Saía para o trabalho antes das 7h. Aos 9 anos, eu ia e voltava sozinha da Escola Municipal Francisco Sertório Portinho, a uns 300 metros de casa. Saía do conjunto habitacional, atravessava uma rua calma e outra movimentada e sem semáforo. Muitos anos depois, soube que, em 1980, 4.782 crianças e adolescentes morreram no Brasil por acidentes de trânsito.

No fim da aula, voltava para casa. Já tinha a chave. Entrava, esquentava a comida, almoçava, saía para brincar, voltava e fazia o dever de casa. Minha mãe chegava na hora do “Jornal Nacional”. Quem me guardava eram Deus, os orixás e minha madrinha Gueli, moradora do quarto andar. Ela acompanhava da janela meu vaivém. Às vezes, tocava a campainha para bisbilhotar se eu estava sozinha, a casa em ordem. Tudo sempre deu certo. Décadas depois, aprendi que um acidente tornaria minha mãe ré por negligência ou abandono de incapaz. E descobri que a ajuda da madrinha era o que os estudiosos chamam de redes de solidariedade, prática corriqueira nos subúrbios da vida.

Tinha uns 10 anos e cursava a quarta série do antigo primário, quando a tia Maria Lúcia, minha professora havia três anos, chamou minha mãe para uma reunião. Soube que ela disse que eu era muito inteligente e não podia fazer o ginásio ali. Minha mãe procurou vaga em duas unidades perto da Estação de Irajá (antes de trem, hoje de metrô), área mais valorizada do bairro, longe dos conjuntos. Conseguiu me matricular na Escola Municipal Mato Grosso, onde estudei da 5ª à 8ª série. Ia e voltada de ônibus. Eu, Deus e os orixás.

Todos esses episódios vieram à memória depois de ler a coluna do amigo Antônio Gois, anteontem, neste mesmo espaço (Aqui o link: Segregação escolar). Ele escreveu sobre segregação na ensino público e contou como alguns alunos são condenados à educação pior, por morarem em favelas ou áreas pobres dos bairros. Então eu entendi o significado daquela troca de escola. A tia Maria Lúcia me catou como a um grãozinho de ouro na bateia. Fui salva; outros, não.

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