A escritora mineira Carolina Maria de Jesus assim se manifestava, na década de 1960, após deixar a favela do Canindé, em São Paulo, sobre o racismo em sua literatura:
“Alguns críticos dizem que sou pernóstica quando escrevo ‘os filhos abluíram-se’. Será que preconceitos existem até na literatura? O negro não tem direito de pronunciar o clássico?”
Dona Carolina, no Brasil o negro não tem direito sequer de escrever, imagina cultivar o idioma nacional. É dura a realidade de escritores negros brasileiros e não é de hoje. Lima Barreto, grande criador de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, entre outras obras primas, dizia tudo isso muitas décadas antes e, como a senhora, era um indignado.
E sobre esta suposta superioridade intelectual, Antônio Cândido, no ensaio “Literatura e Sociedade” (Todavia), assim aponta:
“Um trabalho ideal sobre a literatura dos grupos iletrados, primitivos mas também rústicos, deveria partir da observação concreta dos fatos, passar às análises estruturais e comparativas, para chegar à sua função na sociedade, sem sacrificar o aspecto estético nem o sociológico. Naturalmente, a própria escolha de um tema folclórico já traz o perigo de pressupor que as formas inferiores de arte e literatura explicam necessariamente as superiores.”
Os grifos de Cândido nas palavras “inferiores” e “superiores” não são ocasionais ou aleatórios. Fazem parte de um sortilégio: a compreensão de que é nítida a divisão social (e racial) também no campo das artes —aqui, no caso, a arte literária.
Situações constrangedoras, de cunho racial, ocorrem em regiões variadas do país, atingindo negros de forma acintosa e inconsequente. Sim, é preciso usar da indignação, do protesto, de falas duras —e apontar o dedo na cara do infrator.
Como fez a escritora gaúcha Eliane Marques, autora do livro “Louças de Família” (Autêntica), durante cerimônia de entrega do Prêmio da Academia Rio Grandense de Letras, no último dia 12, na qual era homenageada.
“Totalmente racista”, foi a expressão usada por Marques, após o presidente da instituição, escritor Airton Ortiz, no discurso de encerramento, justificar a pujança do estado em função da “imigração alemã e italiana”, negando, com isso, o papel desempenhado pelos intelectuais negros na produção cultural e literária do Rio Grande do Sul.
“Enquanto isso, nas regiões colonizadas por escravos, infelizmente eles não tiveram liberdade para esse tipo de atividade. Por culpa, obviamente, de quem os escravizava”, disse Ortiz.
A fala provocou a indignação de Marques, com razão, mas não teve o mesmo efeito no restante da plateia, composta apenas por pessoas brancas —ela era a única mulher negra do evento.
Falas como as de Ortiz são recorrentes. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), sinalizam que o Rio Grande do Sul é o segundo estado mais branco do Brasil, com 78,42% —atrás apenas de Santa Catarina. Sua população negra conta com 21% do total de seus habitantes.
O Sul precisa revisitar sua história. No passado, Zeferino Brasil, negro, foi eleito “príncipe dos poetas gaúchos”.
Fica a dica. Oportunidade não falta —já a vergonha…