Escritoras brasileiras falam sobre as dificuldades de publicar no país

Uma pequena investigação sobre as pedras no caminho (e no sapato) de mulheres que escrevem.

Por MARIE DECLERCQ, do Vice

Ilustração no topo por Luiza Formagin.

 

Anos atrás, mostrei um conto que tinha escrito para um veterano da faculdade e ouvi: “você? escritora?” como resposta. Suspeito até hoje que ele sequer leu as páginas que entreguei. Frustrada, comecei a perguntar para mulheres próximas que nutriam esse mesmo interesse pela escrita se elas já tiveram experiências parecidas. Com o tempo, descobri mais dezenas de amigas que, depois de abordagens similares, também desistiram de seguir como escritoras. Pensando nessas mulheres, fui atrás de escritoras brasileiras que venceram essa barreira do “você? escritora? ” querendo sacar por que tantas mulheres como eu nunca pararam de escrever, mesmo sem o apoio de outras pessoas.

Não são poucas as barreiras para viver como escritora no Brasil, considerando que são raros os casos de pessoas que vivem efetivamente só da sua escrita literária. “Ninguém me disse diretamente ‘você não pode ser escritora’, mas se eu só encontrava livros escritos por homens, como poderia pensar diferente?”, relembra Jarid Arraes, escritora nascida em Juazeiro do Norte, Ceará, autora de mais de 60 títulos de literatura de cordel, do livro de contos As Lendas de Dandara e idealizadora do Clube Escrita de Mulheres, que visa incentivar a produção literária feminina.

“Ninguém me disse diretamente ‘você não pode ser escritora’, mas se eu só encontrava livros escritos por homens, como poderia pensar diferente?” — Jarid Arraes

“Tive que me tornar adulta e descobrir o feminismo, sobretudo o feminismo negro, para entender que essa dificuldade em encontrar mulheres negras na literatura era responsabilidade do machismo e do racismo no mercado editorial e no meio literário como um todo”, conta. Nordestina, mulher e negra, Arraes bate num tipo de perfil pouquíssimo lido e publicado no Brasil, em contraponto com as vozes caucasianas e urbanas do eixo RJ-SP. “Ser escritora no Brasil é lutar contra monstros que continuam vivos desde a época da colonização e que mudam suas roupinhas para ganharem uma aparência menos severa, mas continuam fortes e extremamente cínicos.”

Considerando o mundo em que vivemos, marcado de uma profunda desigualdade de gênero e, acima de tudo racial, me parece que essa urgência de inserir mulheres em qualquer espaço sob a desculpa da “representatividade” acabou se tornando um jargão publicitário usado para vender algum produto do momento. O mercado editorial acabou reproduzindo esse mantra “desconstruidão”, utilizando esse rótulo de literatura feminina como um tapinha nas costas dos próprios editores. Nisso, o discurso de valorizar a produção literária de mulheres — que é urgente e indispensável — se tornou um tanto vazio, resumindo-se apenas a um tema de eventos de literatura ou uma ou outra palestra sobre “o machismo na literatura”.

“Um dos problemas de quando o discurso é usado de forma ‘publicitária’ é essa ilusão de fazer parecer que o cenário está lindo e agora sim temos igualdade, quando na verdade não é bem assim”, diz Aline Valek, escritora e ilustradora nascida em Governador Valadares (MG), autora de As Águas Vivas Não Sabem de Si, seu primeiro romance. Foi lendo um dos textos de Aline que descobri um questionamento levantando por Virginia Woolf sobre quem seriam aquelas mulheres que poderiam ser ótimas escritoras, mas nunca foram incentivadas para tal. Com isso, vendo inúmeras mulheres publicando e trabalhando incansavelmente para publicarem suas obras e serem reconhecidas, lembrei que para nós conseguirmos um espaço, é preciso nunca parar de tentar. “Acredito que não podemos nos prender nas aparências, e focar no trabalho de verdade, em nos movimentar e continuar produzindo: escrever livros, fazer oficinas, clubes de leitura que valorizem o trabalho de autoras, clubes de escrita que incentivem mulheres a escrever, presença em eventos, todas iniciativas que já vêm acontecendo e se fortalecendo cada vez mais. (…) A literatura também é nossa.”

“Um dos problemas de quando o discurso é usado de forma ‘publicitária’ é essa ilusão de fazer parecer que o cenário está lindo e agora sim temos igualdade, quando na verdade não é bem assim” — Aline Valek

Não só na prosa, como na poesia também há uma resistência feminina em valorizar as obras de autoras contemporâneas. Ana Guadalupe, paranaense, autora de dois livros de poesia, vê um ambiente positivamente igualitário. “Acho que na poesia em especial as coisas são um pouco diferentes e algumas das autoras mais reconhecidas, hoje, são mulheres (Ana Martins Marques, Angélica Freitas, Alice Sant’anna, Bruna Beber, só alguns exemplos) que estão em grandes e pequenas editoras.”

Ana conta que foi com a ajuda da internet que descobriu movimentos como o #LeiaMulheres e outras campanhas para o aumento da presença feminina nos meios literários. “Acho que uma das vantagens do ‘oversharing’ nas redes sociais é a possibilidade desse tipo de denúncia e da criação de um alarme coletivo”, diz ela. “Acho que mudamos o cenário construindo essa consciência e levando isso a editores, organizadores (e fazendo com que sejam espaços ocupados por mulheres).”

Muitas vezes percebo, no entanto, que há uma desconfiança quase instintiva com a prosa feminina, o que acabou por criar algumas palavras de ordem na internet — e fora dela — proibindo um escritor de contar sobre algo que foge da sua realidade. Uma pessoa de classe média escrever sobre alguém da classe baixa ou um homem escrevendo sob a perspectiva feminina, por exemplo. É um debate perigoso, porque ao mesmo tempo em questiona a superioridade de parte de ficcionistas, também limita o ofício do escritor e nos restringe a olhar a literatura sob um manual de boas práticas tão pregado nas redes sociais.
Ilustração por Luiza Formagin.

“Podemos achar que é uma pena que Madame Bovary ou Anna Karênina não tenham sido escritos por mulheres, mas não há como ‘corrigir’ a História com a caneta da igualdade. É algo que podemos fazer daqui para frente, apenas, tentando não cair em radicalismos”, rebate Carol Bensimon, gaúcha, tradutora e autora de três romances, entre eles Sinuca embaixo D’água. “Da mesma forma, acho extremamente redutor se as mulheres escritoras decidirem se voltar somente para os temas ditos ‘femininos’, ou se o sistema literário esperar, no fundo, que elas façam isso. Para mim, a verdadeira igualdade na literatura é a liberdade de se escrever sobre o que se quer, sem imposições prévias. Se uma mulher quiser escrever um faroeste, ótimo.”

Valek também compartilha da mesma ideia sobre essa chamada “apropriação” de vozes na prosa. “Há homens que escrevem ótimas personagens femininas, e isso nada mais é do que um escritor fazendo um bom trabalho. Merece reconhecimento. O problema é que as escritoras, quando escrevem personagens masculinos ou femininos com a mesma qualidade, não têm o mesmo reconhecimento dos colegas homens.”

“A verdadeira igualdade na literatura é a liberdade de se escrever sobre o que se quer, sem imposições prévias. Se uma mulher quiser escrever um faroeste, ótimo.” — Carol Bensimon

De certa forma, as obras literárias de mulheres ainda são analisadas com um certo tom de condescendência, como houvesse um espanto de uma mulher poder escrever bem. Me vi passando por situações parecidas ao submeter textos meus à análise de pessoas que curtem literatura. As observações sempre eram primárias, quase como se eles nunca tivessem lido de fato o que escrevi. Não me espantei quando a maioria das escritoras com quem falei para esta matéria relataram experiências parecidas.

“Dois dos meus primeiros ‘interlocutores’ literários, pessoas que entendiam de literatura e procurei pra trocar ideia, trataram meus textos de um jeito que hoje acho esquisito. Eu tinha uns 17 anos, tinha acabado de entrar na faculdade, e eles eram homens mais velhos, editavam algumas coisas e tal. Ambos me falaram que os poemas eram fracos e não desenvolveram para além disso (coloquei alguns dos poemas dessa época no meu primeiro livro). Um deles falou que eu deveria ‘desistir da poesia, talvez tentar prosa’, mesmo que eu tenha deixado claro que amava poesia, e lembro disso até hoje — e ambos foram para um discurso mais próximo do flerte, de chamar pra sair”, conta Guadalupe.

Valek também passou por momentos desconfortáveis que revelam um certo amadorismo e, por que não, recalque por parte de uma parcela masculina do mercado literário. “Já recebi algumas críticas (todas escritas por homens, inclusive) que tentavam diminuir meu trabalho, como se eu não soubesse o que estava fazendo, como se eu ainda não fosse boa o suficiente para me atrever a escrever e publicar um livro. Tentam te colocar de volta no seu lugar. Não deve ser mesmo fácil lidar com a ideia de que uma mulher possa ser uma boa escritora.”

“Dois dos meus primeiros ‘interlocutores’ literários, me falaram que os poemas eram fracos e não desenvolveram para além disso; coloquei alguns dos poemas dessa época no meu primeiro livro.” — Ana Guadalupe 

Já Jarid relata que recentemente passou por um caso de plágio em que um homem apagou seu nome das suas obras de cordel, apropriando-se delas. Situações constrangedoras como essas também rolaram nas editoras, nas quais a escritora ouviu que as lendas de Dandara “falavam muito disso, de cor”, segundo ela. Agora, conta, os obstáculos parecem estar no fato de que Arraes está prestes a lançar um livro de poesias eróticas. “Recebi comentários de pessoas que acham que vou ‘atrapalhar’ meu trabalho, porque de alguma forma ‘não pega bem’ uma ‘escritora séria’ publicando esse tipo de conteúdo ao lado de obras como meus cordéis e meu livro mais recente.”

Parece que por mais que discutamos a liberdade sexual, não sobram até hoje observações castas quando mulheres se atrevem a escrever sobre sexo. Uma pena, embora esse tipo de obstáculo se torne uma chacota criada pela escritora, assim como Hilda Hilst fez ao escrever O Caderno Rosa de Lori Lamby.

Para algumas, como a própria Jarid conta, o jeito é buscar no universo das publicações independentes um espaço igualitário para publicar o que bem entender sem se preocupar com o tal ‘apelo mercadológico’ que domina as editoras maiores. “Tem sido um excelente caminho para bater de frente com a lógica arcaica do mercado editorial e dos eventos literários”, conta.

Bia Bittencourt, idealizadora da Feira Plana, um dos maiores eventos de publicações independentes do país, vê um norte mais diversificado nesse meio. “Não sei exatamente se é uma sinergia com a equipe e curadoria que são basicamente femininas, se é uma tendência intuitiva de escolhas minhas ou se há mais liberdade por aqui. Mas visualizo editoras incríveis guiadas apenas por mulheres e não vejo enfrentarem nenhuma dificuldade por isso, como a UBU.”

Já Márcia Denser, importante nome da literatura brasileira, paulista, autora de inúmeros romances e sempre lembrada pelo rótulo reducionista de “queridinha de Paulo Francis”, acredita que a barreira de gênero imposta na literatura ainda é resistente por uma imposição mercadológica. Para Denser, porém, as mulheres precisam começar a escrever como sujeito da ação, não como objeto do homem. Ela diz que a questão de gênero extrapola o assunto, já que é uma pauta que foi reativada a partir dos anos 2000 devido à emergência dos movimentos ultra-conservadores, de direita, incentivados desde a década de 80 pelo neoliberalismo combinado de Reagan/Thatcher. “Você, como escritora ou escritor, precisa ter a consciência que a questão de gênero está sendo levantada de 20 anos para cá por questões socioeconômicas muito mais amplas e abrangentes e a(…) isto está castigando homens e mulheres indiscriminadamente. Se você (…) aceitar jogar este jogo estará sendo ‘objeto de forças socioeconômicas’ que falarão através de você, e não ‘sujeito do próprio discurso’, que é o que um escritor, homem ou mulher, precisa se tornar: uma voz única.”

“As mulheres precisam começar a escrever como sujeito da ação, não como objeto do homem” — Márcia Denser

No artigo “O romance brasileiro contemporâneo conforme os prêmios literários (2010-2014)” [CC5] a pesquisadora gaúcha Regina Zilberman traçou uma espécie de perfil dos finalistas e ganhadores dos principais prêmios literários no Brasil como o Jabuti, São Paulo de Literatura e o Portugal Telecom de Literatura. Os principais, tiveram como finalistas 62 escritores, sendo 16 deles mulheres. Nesse período, a pesquisadora também destacou que apenas dois escritores negros foram selecionados para a final e que há uma predominância de obras selecionadas de pessoas no eixo RJ-SP, de classe média e, na sua maioria, de uma geração mais jovem nascida entre as décadas de 60 e 80.

Nas semanas em que entrei em contato com as escritoras, talvez em busca de respostas muito mais direcionadas às minhas próprias dúvidas, percebi também que o meio literário onde se concentram os prêmios, os eventos e as críticas é tão ensimesmado que esquecemos que o gênero não é a única barreira existente. Por isso fiquei pensando: quantas mulheres e homens existem dentro dessa vastidão brasileira com boas ideias na cabeça que jamais leremos?

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