Especialistas criticam discursos de autoridades brasileiras em comitê de combate ao racismo da ONU

Governo enviou relatório, que estava pendente de atualização desde 2004, apenas com dados até 2017

Nessa semana, o Brasil é o tema do Comitê pela Eliminação da Discriminação Racial e pelos Direitos Humanos (CERD) da ONU. No primeiro dia de audiência, nesta quarta (16), representantes de ONGs brasileiras, que estão em Genebra, criticaram o material apresentado pelo governo brasileiro, com dados apenas até 2017. Uma das falas questionadas pelos especialistas foi o do secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara, que negou que a mortalidade materna entre negras seja superior à das brancas, o que não corresponde às estatísticas do Ministério da Saúde.

Integrantes do CERD, que também foram municiados com informações de um ” relatório sombra” feito por ONGs e ativistas brasileiros, fizeram diversos questionamentos às autoridades brasileiras. Os principais pontos foram sobre programas de erradicação da pobreza, equiparação de salários entre negros e brancos, acesso à educação, representatividade na política, redução da desigualdade na saúde e redução da violência policial. Nesta quinta, está sendo realizada a última fase de audiência. Ao final, o comitê da ONU enviará recomendações ao estado brasileiro.

— No nosso relatório, tocamos em pontos como genocídio da população negra, feminicídio, violência policial, questão do aborto. Gama de temas que entendemos importantes, principalmente sobre o o racismo estrutural do Estado e a falta de políticas específicas que deem conta do tema —explicou Rodnei Jericó da Silva, advogado e coordenador do programa SOS Racismo de Geledé Instituto da Mulher Negra, um dos autores do relatório sombra.

De acordo com o especialista, os questionamentos acerca das informações passadas pelo governo tem o prazo de 48 horas para serem respondidos. Depois disso, um novo relatório deve ser feito para, enfim, ser apresentado à sociedade civil e à ONU. O novo documento deve ficar pronto na próxima semana, mas ainda não tem data marcada.

Relatório do governo atrasado há mais de 10 anos

Em 2001, após a Conferência de Durban, o Brasil se comprometeu a entregar relatórios periódicos sobre suas ações de combate ao racismo. No entanto, só o fez em 2004 e, desde então, uma nova atualização estava em atraso. Procurado, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) explicou que a atual gestão começou a trabalhar no assunto em 2019 e o relatório entregue “compreende o período de 2004 a 2017. No próximo, será abordado o período a partir de 2018”.

Ativistas, no entanto, acreditam que a omissão de dados mais recentes poderia ser uma “escolha estratégica”, considerando os resultados obtidos, no tema, pela atual gestão. Jericó da Silva faz uma avaliação positiva dos pontos levantados em audiência, mas diz que as autoridades brasileiras presentes faltaram com a verdade em diversas respostas.

– Apresentaram números que nos parecem irreais, como quando disseram que representação de afrodescendentes dentro da magistratura hoje é de 21%, o que sabemos que não condiz com a verdade. O representante do Ministério da Saúde disse que o governo priorizou vacinação de indígenas, quilombolas. Falas distorcidas da realidade. Houve um retrocesso absoluto em políticas sociais no governo Bolsonaro, aumento de violações de direitos humano e do discurso de ódio –disse o especialista.

Em seus discursos, representantes do Ministério da Cidadania, da Saúde e do MDH defenderam ações do governo durante a pandemia, como o auxílio emergencial e a vacinação. Houve, também, muita ênfase ao programa “bem-vindos”, para abrigar refugiados, especialmente venezuelanos.

– O governo se mostrou comprometido com a promoção da igualdade social, comprometido em apoiar a população vulnerável, e com o combate à desigualdade – afirmou Ivelonea de Araújo, representante do Ministério da Cidadania.

Relatório de instituições civis contesta dados do governo

No Relatório Sombra produzido por instituições da sociedade civil à ONU, entre elas as ONGs Criola, Geledés Instituto da Mulher Negra, Comunidade Bahá’í do Brasil, Coalizão Negra por Direitos e Instituto Raça e Igualdade, foram ressaltados dados históricos, de 2004 a 2021 sobre a crescente desigualdade racial e social no Brasil. Contrapondo os dados antigos apresentados pelo governo, números dos últimos quatro anos mostraram que a população negra foi a menos assistida no país em áreas da educação, saúde, emprego, moradia e segurança, sendo os principais alvos da violência policial e até mesmo da Covid-19.

Em um dos trechos, o documentou relembrou a fala do presidente Jair Bolsonaro em 2017, em sua pré-campanha para a presidência. Na ocasião, ele disse que pretendia acabar com a demarcação de territórios indígenas e quilombolas, além de comparar pessoas negras com animais e mercadoria, remetendo ao período da escravidão, ao dizer que pesam em arrobas e não “servem para procriar”.

Gay McDougall, advogada, relatora para o Brasil e especialista independente do CERD — Foto: Reprodução ONU

Após o episódio, a então Procuradora-Geral da República Raquel Dodge apresentou denúncia contra Bolsonaro, mas o processo não foi aberto pelo Supremo Tribunal Federal devido à imunidade parlamentar.

Ressaltando a falta de prioridade do governo com as comunidades quilombolas e indígenas, as instituições civis denunciaram as crescentes violações à proteção do patrimônio. No relatório, foi apontado que “contrariando a recomendação do Comitê CERD para que o Estado acelerasse o processo de identificação dos territórios quilombolas, foram titulados apenas 3 territórios e publicados, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), somente 12 editais referentes ao Relatório Técnico de Identificação e Delimitação.

— Apresentamos dados reais, pautados em fatos e dados oficiais. Por isso, avalio muito positiva a atuação da sociedade civil, que agiu como sempre, de forma transparente e apontando as violações históricas, bem como a falta de empenho do governo em uma agenda de direitos humanos. O governo, ao contrário, encerra a participação na ONU devendo informações sobre as omissões para com a população negra — afirma Jericó da Silva.

Alta de mortalidade materna

Ainda entre os dados contestados está o de mortalidade materna. Segundo os dados oficiais, do próprio Ministério da Saúde, a taxa de mortalidade materna no país saltou de 57,9 (2019) para 107,5 (2021) a cada 100 mil nascidos vivos, sendo 61,3% de mulheres negras.

Mas, na audiência, o secretário Raphael Câmara, que se notabilizou por defender abstinência sexual como política pública, negou o problema no país e também não reconheceu a existência de violência obstétrica.

– O desconhecimento do secretário tem a ver com o atual governo. As taxas de mortalidade de mulheres negras nunca pararam de crescer. Os índices apresentam que essas mulheres têm a vida atravessada pela fome e insegurança alimentar, falta de saneamento, trabalho e renda. Além disso, têm acesso precário à saúde e educação e estão mais expostas às violências e à violação de direitos por parte do Estado – afirmou Lúcia Xavier, coordenadora Geral da ONG Criola.

“A articulação apresentou um relatório que, além de mostrar ataques à saúde e à sexualidade de mulheres negras, denuncia o genocídio da população negra, racismo religioso, insegurança alimentar, encarceramento em massa, bem como violações aos Direitos Humanos e direitos das populações lgbtqi+p e quilombolas. O objetivo final é provocar o Estado Brasileiro para que cumpra com os tratados internacionais do qual é signatário e que determinam medidas para o enfrentamento da desigualdade, discriminação racial, racismo e para promoção dos Direitos Humanos da população afrodescendente” afirmou, em nota, a articulação.

Racismo religioso

Também presente em Genebra, Mãe Nilce de Iansã destacou a pesquisa, realizada pela Rede Nacional de Religiões de Matriz Africana, sobre racismo religioso.

– Trouxemos recomendações, de como aprimorar mecanismo de denúncia contra crime de racismo religioso, para melhorar atendimento nas delegacias e punir severamente esse crime, que nos mata. Queremos medidas protetiva e uma política de proteção para o nosso povo. Queremos ser ouvidos, mas o assunto não tem interessado ao poder público.

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