Espelho: Cápsulas de autoestima, vacinas contra o preconceito, anabolizantes da igualdade

Foto: Marta Azevedo

por Flavia Oliveira no O Globo

Da galeria de imagens inesquecíveis da edição 2016 do Globo de Ouro, premiação dos correspondentes estrangeiros nos EUA aos melhores da TV e do cinema, fará parte a ocupação do palco pelo clã de Denzel Washington. Homenageado com o troféu Cecile B. DeMille pelo conjunto da obra cinematográfica, o astro americano foi econômico nas palavras, mas emocionou a audiência planeta afora quando levou a mulher, Pauletta, também negra, e três dos quatro filhos do casal — só faltou Malcolm, homônimo do líder do movimento pelos direitos civis que o ator encarnou em 1992 — para acompanhá-lo durante o discurso. Denzel quebrou o protocolo para avisar ao mundo que uma família afro-americana pode ascender ao topo da montanha de Hollywood. E ensinar que a escalada dos negros na pirâmide social é projeto familiar, coletivo, nunca individual, solitário.

Não bastasse a atitude carregada de símbolos, traduziu com simplicidade comovente a aridez da trilha. Agradeceu à mãe por ter convencido o pai a iluminar a casa com lâmpadas mais potentes (e caras) que as de 25 watts. Foi essa luz (real e metafórica) que orientou o caminho de mobilidade social do ator. Momentos depois, quando subiu ao mesmo palco do Beverly Hilton para receber o Golden Globe de melhor atriz em série dramática pela Cookie de “Empire”, Taraji Henson avisou que se alongaria no discurso, pelo qual esperara duas décadas. Reprisava ali o sentimento de Halle Berry, em 2002, quando se tornou a primeira negra a levar o Oscar de melhor atriz; e Viola Davis, pioneira no Emmy, em 2015.

Naquela madrugada de segunda-feira no Brasil, o que a TV exibiu aos insones foi uma aula de representatividade negra e debate escancarado sobre construção de igualdade. Os latinos também se fizeram presentes com a vitória dos mexicanos Alejandro Iñárritu (melhor diretor em drama por “O regresso”) e Gael García Bernal (ator pela série “Mozart in the jungle”) e do guatemalteco Oscar Isaac (ator pelo filme para TV “Show me a hero”). Os premiados não se furtaram a pôr o dedo na ferida da falta de oportunidades para afro-americanos, hispânicos, mulheres, LGBTs.

Dias antes, no gigante tropical ao Sul, um hospedeiro do vírus da intolerância denunciara ao Facebook, com o plano de tirar da rede, a foto do pequeno Matias, 4 anos, com o boneco de Finn, personagem negro de “Star Wars: O despertar da Força”. A mãe do menino, Jaciana Melquíades, postara a imagem do filho, sorriso estampado no rosto, como prova de que identificação é sinônimo de autoestima. A foto multiplicou-se pela web (foram mais de 35 mil curtidas e quase dez mil compartilhamentos) e alcançou o ator Jonh Boyega. Primeiro negro a protagonizar um filme da série, o britânico não apenas replicou a imagem como escreveu mensagem de gratidão e encorajamento ao brasileirinho. Na última terça, seu post no Instagram beirava cem mil aprovações e três mil comentários.

Aos que se espantam com o burburinho virtual proporcionado pela singela foto de um menino negro e seu boneco de mesmo tom de pele ou pela premiação de estrelas negras no país de Barack Obama, é recomendável o teste do espelho. Olhem-se detidamente e reflitam o quanto sua imagem e semelhança estão representadas no padrão de beleza da moda e da cosmética, na tez dos bebês de brinquedos, no topo das funções corporativas, nos papéis principais em artes cênicas e audiovisuais, nos cargos políticos majoritários, em ministérios, secretarias de governos e autarquias, no Legislativo, no Judiciário, entre formadores de opinião. Agora, pensem nos que estão fora dessa sequência de registros.

A escravidão subtraiu dos africanos trazidos ao Brasil liberdade, nome e sobrenome; tentou aniquilar tradições culturais e religiosas. Desprovida de políticas de inclusão socioeconômica, a abolição não implodiu o racismo. O patriarcado arrasou o terreno da autoestima feminina. A combinação dos dois regimes feriu mais gravemente as mulheres negras. O eurocentrismo dizimou os indígenas.

Dezenove anos atrás, no primeiro aniversário de minha única filha, meu presente tinha de ser a boneca negra que eu jamais tivera. No Rio, não havia. Por uma revista, soube de uma em São Paulo; por telefone, encomendei. Uma amiga teve a generosidade de buscá-la na loja e trazê-la para a festa. Um segundo boneco, batizado de Martin (homenagem a Luther King) — mas que também poderia se chamar Zumbi (dos Palmares), Abdias (Nascimento) ou Nelson (Mandela) —, foi comprado numa tenda do Fórum Social Mundial, em 2003. Em Porto Alegre. Não é fácil ganhar visibilidade, construir identidade. Daí a importância da família de Denzel, do protagonismo de Taraji, do boneco do Finn, da foto de Matias. São cápsulas de autoestima, vacinas contra o preconceito, anabolizantes da igualdade. Precisamos deles.

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