Esta não é a casa dos negros, mas da América

Procura-se um diminutivo para baptizar o 19.º museu Smithsonian. Tem a forma de uma imponente pirâmide invertida ou talvez antes de uma enorme coroa de pano, como a que é usada pelos membros da tribo yoruba, no norte de África, e ocupa o último espaço disponível no Washington Mall.

Em Abril, era um cubo de bronze em fundo verde de relva, enquadrado por ramos de cerejeiras em flor, o único edifício escuro a quebrar a regra do mármore branco naquele que é um dos lugares mais simbólicos da América. Ainda havia andaimes, árvores recém-plantadas e, junto à porta fechada, um silêncio que contrastava com o ruído de todos os outros museus e espaços públicos da capital do país. Cinco meses depois, o edifício está concluído.

The National Museum of African American History and Culture (NMAAHC) conta a história da experiência de ser negro na América e a inauguração será feita este sábado pelo primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos, a menos de quatro meses de terminar o seu segundo mandato e dias depois de mais um polémico disparo da polícia sobre um negro americano que alegadamente lia um livro enquanto esperava que a filha saísse da escola. A versão da polícia é diferente, em vez do livro havia uma arma no carro. O homem morreu. Desta vez, em Charlotte, na Carolina do Norte.

Há muito simbolismo à volta da inauguração do novo museu que não se quer limitar a contar uma história de tragédia. Cem anos depois de ter sido proposto por um grupo de veteranos da Guerra Civil, o museu abre numa altura em que o país fundado por George Washington em 1776 continua a viver sob forte tensão racial e a ter diferentes versões sobre o que é existir com um corpo negro na América, o tema do livro de Ta-Nehisi Coates. Vencedor do National Book Award em 2015, Entre Mim e o Mundo (Ítaca) é o testemunho de um homem negro dirigido ao seu filho adolescente, também negro. Ele problematiza a chamada questão de raça, diz que ser negro não é ter uma raça e o termo “raça” não é mais do que uma reformulação ou “tentativa de contenção do problema”. Quando se pergunta o que é ser negro também se deve perguntar o que é ser branco ou ser humano. Como é que um museu pode então falar de tudo isto sem que o faça numa versão demasiado simplista? A pergunta contém em si a explicação para a longa espera entre o momento em que o museu apareceu como ideia e aquele em que surge finalmente construído.

O edifício é um cubo de vidro dividido em três grandes blocos e com tiras de alumínio sobrepostas que parecem imitar braços no ar num gesto de celebração. Parte dele está coberto com placas de bronze, que quando reflectem a luz do sol de fim de tarde são um gigantesco espelho dourado. Na sombra, o bloco é de um castanho cor de ferrugem e tem elementos decorativos inspirados no povo yoruba. Da autoria do arquitecto inglês de origem ganesa David Adjaye, o exterior do museu reflecte uma das aspirações de Lonnie G. Bunch, o seu director: distinguir-se simbolicamente dos outros edifícios e ser capaz de falar de resiliência e capacidade de elevação, como referiu numa recente entrevista à New Yorker.

Todos os americanos

De fora, o edifício nunca é igual. O modo como é apreendido depende da luz, do ângulo e da posição em relação ao Monumento de Washington, que a partir de agora passa a ter também outro enquadramento. Orçado em 540 milhões de dólares (481 milhões de euros), o “corona” – como também é conhecido devido ao modo como parece replicar a coroa yoruba – foi financiado em partes iguais pelo orçamento federal e por donativos. Entre os seus principais mecenas, estão nomes como Michael Jordan, Samuel L. Jackson ou Oprah Winfrey, que doou mais de 20 milhões de dólares e tem um auditório com o seu nome no edifício situado a leste do Monumento de Washington e que este fim-de-semana vai ter lotação esgotada. Quase 30 mil bilhetes estão vendidos há mais de um mês e só se conseguem fazer reservas para a segunda quinzena de Outubro. Mas Bunch fez questão de declarar que toda a gente contribuiu. Brancos, negros, judeus, muçulmanos. Os discursos oficiais são sempre no sentido de que este não é um museu de uma raça, mas de uma identidade, e a seu público são todos os americanos.

“Este museu vai contar a história da América através da lente da história e da cultura afro-americana. Esta é a história da América e este é um museu para todos os americanos”, declara Lonnie G. Bunch, no programa distribuído à impressa em véspera da abertura do NMAAHC. Natural de Newark, Bunch é um historiador de 63 anos que acompanhou todo o processo de concepção e construção quase desde que os seus estatutos foram aprovados em 2003 pelo então presidente George W. Bush. Sem instalações e sem uma única peça na colecção, o director do futuro museu lançou um programa nacional de recolha de objectos. Chamou-lhe “Saving African American Treasures”. Durante vários anos, historiadores e peritos em arte, religião ou cultura popular percorreram o país para recolher o material que constituiria o espólio do novo museu.

35 mil objectos

Conseguiram-se mais de 35 mil objectos, a maior parte doada. Desses, cerca de um décimo estão a partir de agora expostos numa exposição organizada sobretudo cronologicamente e que sugere uma evolução, desde a chegada de barcos vindos de África, ao trabalho em plantações de algodão, à participação na Guerra Norte-Sul, ao fim da escravatura, à perseguição do Ku Klux Klan, ao assassinato de Martin Luther King Jr., ao caixão de Emmet Till, o rapaz negro de 14 anos assassinado em 1944, numa pequena cidade do Mississippi, depois de ter assobiado a uma mulher branca.

Há ainda as tensões actuais, a presidência de Barack Obama e o movimento Black Lifes Matter. Isso e o quotidiano de gente anónima ou símbolos de quem se destacou. Entre algemas ou placas a exibir o número de escravos numa fazenda, há o Cadillac dourado de Chat Berry ou o capacete de Muhammad Ali, uma secretária de escola para crianças negras nos anos 50, ou a colecção de chapéus de Mae Reeves, uma das primeiras mulheres negras empresárias, que fez moda em Filadélfia nos anos 40 e 50.

O que fica de quem já viu o museu por dentro? As primeiras impressões falam de um olhar demasiado simplista. Descrevendo o espaço e o modo como está concebido como uma “montra de glória e de vergonha”, a New York Magazine destacava a tentativa de neutralidade no modo como ali se conta a história da experiência afro-americana e de haver uma “extrema densidade” expositiva. Refere ainda que a narrativa oficial evita tocar fronteiras polémicas, preferindo seguir por uma amostra “segura”. Tudo parece, segundo o texto daquela revista, monumental e provisório. O crítico do Washington Post afirma que o museu é denso e repleto de informação, mas por vezes “esmagador” e demasiado dependente de multimédia. Num tom irónico, recomenda que se leia um livro antes da visita para que a informação seja melhor absorvida. O New York Times salienta o forte impacto provocado por uma veste branca do Ku Klux Klan e resume o museu como de visita obrigatória para quem quer conhecer a história da América, enquanto o Wall Street Journal escreve que é um sítio que perturba, emocionante e iluminado.

O museu pode receber cerca de oito mil visitantes por dia e não há limite de tempo para se estar no seu interior, mas parece improvável que se consiga abarcar tudo numa única ida ao edifício cor de bronze construído justamente no lugar onde até 1800 existia uma plantação explorada por senhores de escravos. Ali, o visitante está sempre perante essa dialética, num equilíbrio difícil: o passado e o presente, a escravatura e a liberdade, a supressão da dignidade humana e o modo de a reconquistar ou manter, a opressão e a segregação. O que o museu parece estar sempre a dizer a quem o visita é que a América construída com base numa instituição chamada escravatura.

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