Por uma esquerda que rejeite o mito da neutralidade das leis; e que defenda, em vez a “legalidade” abstrata, os conflitos, a pressão social e a disputa no interior do sistema jurídico
Por Monica Stival Do Outras Palavras
Proponho que nós, de esquerda, reflitamos sobre o que significa defender pura e simplesmente “a legalidade”, “o Estado de direito”, “a aplicação imparcial das leis”.
Quando discutimos os meios de comunicação, quando discutimos as intervenções e posições cotidianas, mesmo aquelas em almoços familiares ou nas confusões sentimentais em grupos de amigos, costumamos mostrar como é ingênua a afirmação da neutralidade. Tomamos já como discussão vencida a ideia da imparcialidade. Por que, então, haveria neutralidade ou imparcialidade no sistema judiciário?
Quando a lei antiterrorismo for utilizada contra manifestações populares, quando a lei de propriedade for utilizada contra ocupações populares daqueles que não contam nem com a garantia do direito à moradia, quando o aborto for absolutamente criminalizado, vamos defender pura e simplesmente a legalidade? Não estou sugerindo, de modo algum, menosprezar o direito positivo; estou propondo disputar o espaço que confere legitimidade às leis, às interpretações e às decisões jurídicas. É nessa medida que defender a Constituição de 1988 é defender o direito positivo vigente sobretudo porque esta Constituição é uma conquista social substancialmente progressista. Nem toda Constituição é imediatamente boa ou justa, de um ponto de vista político e social (não qualquer ponto de vista). É somente este ponto de vista que pode disputar a legitimidade dos processos institucionais – e a disputa política, sabemos bem, não se dá em esfera pública igualitária, mas nos enfrentamentos por narrativas próprias (aqui o papel fundamental das mídias alternativas e das redes sociais, apesar dos pesares) e nos enfrentamentos práticos organizados, como ocupações e manifestações de rua.
Assim, creio que a tarefa crítica de esquerda seja hoje, sobretudo, explicitar a posição política que cada decisão implica. Não podemos sacralizar o direito positivo, como se a aplicação das normas ou os procedimentos pudessem ser “puros”, independentes de narrativas e de perspectivas políticas e morais. Não se pode simplesmente defender a legalidade por ela mesma, mas disputar o sentido e, com isso, o conteúdo do sistema legal. Por exemplo, creio que caiba à esquerda mostrar que, sim, há lei de responsabilidade fiscal, cujo sentido é fundamentalmente liberal; mas ela implica crime de responsabilidade? A ilegalidade que justifica o termo golpe, abstraindo todo o resto do processo complexo de narrativa e inviabilização de certas figuras politicamente fortes, está na ligação entre a lei que regulamenta a gestão orçamentária e a possibilidade de interromper mandato – essa possibilidade não está dada constitucionalmente. Pelo menos se a questão for analisada politicamente. Afinal, além da letra da lei de responsabilidade há o espírito complexo que faz com que outros direitos dependam de grana, simplesmente – combate à zika, combate à miséria, ao desemprego, etc. Vale notar como é curioso defender alteração no sistema institucional executivo por gestão orçamentária e, ao mesmo tempo, como sugere Armínio Fraga em entrevista recente, propor “orçamento zero”, isto é, a suspensão dos repasses constitucionais – muitos dos quais ligados a políticas públicas que se sobrepuseram, por seu valor social e político, à letra do controle fiscal.
Aqui entra a decisão sobre o vínculo entre essas normas, a viabilidade de políticas públicas dentro do preceito liberal do modelo fiscal e a aplicação da lei geral ao caso particular (sem comentar que se aplicaria, se fosse o caso, a todos os governantes, em exercício ou não…). [não vou tratar aqui da questão das ilegalidades que não estão diretamente ligadas ao processo formal de impedimento aberto na Câmara Federal]. A decisão é conceito político por excelência (e não elemento especificamente jurídico, como diz Schmitt, senão formalmente ligado ao sistema jurídico nesse nosso tipo de sociedade).
Portanto, a democracia se revela esse espaço aberto à disputa política e moral sobre as leis, interpretações e decisões. É na democracia que se pode disputar o sentido político que atravessa necessariamente o sistema judiciário, na medida em que é praticado por pessoas. E explicitar isso não significa menosprezar a ordem jurídica, mas mostrá-la tão humana quanto qualquer outra esfera da vida social, tão política quanto qualquer outra intervenção no espaço comum, no espaço público. Não se pode simplesmente defender a legalidade como se estivesse em questão assentir ao que diz o sistema jurídico, como se este fosse um sistema impessoal que se revelasse a origem e o fundamento da verdade e do justo.
Ora, todo movimento social que obteve vitória na demanda por algum direito social sabe que não se pode reservar as transformações do direito positivo exclusivamente ao movimento de jurisprudência, como se as transformações – que não são “frias”, mas reacionárias ou progressistas, isto é, com sentido político – respondessem apenas a uma necessidade interna do sistema jurídico; ou como se fossem legitimadas em discussões igualitárias cujo procedimento estivesse calcado em uma razão comum. As conquistas sociais sedimentadas na forma jurídica são resultado de disputas que envolvem racionalidades distintas, que envolvem força política, que envolvem posição explícita a respeito do sentido progressista que tais demandas representam, considerando a vida concreta das pessoas (não todas, é claro…).
Combater o normativismo não implica dizer que não há democracia, mas estado de exceção. As medidas de exceção só estão em disputa política e social em uma democracia, em um espaço aberto justamente a diferentes narrativas e interpretações sobre os fatos e sobre o dever-ser (direito). Enquanto pudermos enfrentar esse debate, há democracia. E é explicitando o sentido reacionário de interpretações e decisões correntes que poderemos manter esse espaço aberto e nos colocarmos dele de maneira distinta daquela religiosa pela qual se coloca as decisões jurídicas acima da crítica social. Abrir mão de mostrar que há sentidos distintos nas normas e na sua aplicação é abrir mão de colocar-se no espaço aberto e indeterminado que a democracia permite.