“Estamos no caminho certo para combater o feminicídio”

Enviado por / FonteKatia Mello

Artigo produzido por Redação de Geledés

A conclusão é de Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ao comentar a política de combate à violência doméstica que mata mulheres no Brasil

Todos os dias 140 mulheres e meninas são assassinadas no mundo por seus parceiros ou por parentes próximos, ou seja, uma mulher ou menina é morta a cada 10 minutos. Esses feminicídios representam globalmente 60% dos cometidos no último ano, se consideramos o total de 85 mil mulheres ou meninas mortas intencionalmente. Os dados foram divulgados nesta segunda-feira, 25, Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, no relatório “Feminicídios em 2023: Estimativas Globais de Feminicídios por Parceiro Íntimo ou Membro da Família”, da ONU Mulheres e do UNODC.

Para comentar o relatório da ONU e a situação do feminicídio no Brasil, em especial a violência doméstica que impacta mulheres negras, a reportagem de Geledés conversou com Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), responsável pela elaboração do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Para Samira, a criação de um Ministério de Mulheres na gestão atual, assim como a retomada de uma política nacional sob a perspectiva de gênero são diretrizes eficazes no combate à violência contra a mulher.

A diretora-executiva do FBSP ressalta ainda a necessidade de promoção de políticas públicas focalizadas ao segmento que mais sofre os impactos da violência doméstica no país, as mulheres negras e periféricas.

Geledés – Uma mulher morre a cada 10 minutos vítima do parceiro ou de familiares, segundo relatório da ONU Mulheres divulgado nesta segunda-feira.  Ao longo do ano passado, 85 mil foram assassinadas intencionalmente.  Há erros nas estratégias de combate ao feminicídio?

Estamos falando de dados mundiais, então pensar em erros de estratégias depende muito do contexto, porque há países com uma agenda de enfrentamento ao feminicídio e há países, como o Afeganistão, em que é possível matar uma mulher apedrejando-a em via pública e, para eles, está tudo bem.

Pensando no contexto brasileiro, finalmente estamos no caminho certo, com a criação do Ministério das Mulheres, com a retomada de uma agenda nacional de políticas públicas sob a perspectiva de gênero, reconhecendo que ela decorre das assimetrias entre homens e mulheres. Tudo isso é fundamental para pensarmos em políticas públicas que sejam eficazes.

No mandato anterior havia um ministério da Família e dos Direitos Humanos que tinha a perspectiva familista, que tirava esse olhar da mulher enquanto um sujeito de direitos e o deslocava para a família como um ente a ser preservado de qualquer maneira, enquanto que a gente sabe que, normalmente, a família é a fonte de violência doméstica, seja para a mulher vítima de feminicídio ou abuso sexual ou seja para a menina que é vítima de violência sexual. Portanto, do ponto de vista nacional, estamos no caminho certo.

Em nível estadual, há Estados que estão fazendo trabalhos interessantes e outros que estão achando que vão resolver o problema da violência contra a mulher com aplicativos. Temos um quadro no Brasil bastante desigual.

Geledés – Quais são os Estados com políticas eficazes que destacaria?

É difícil falar em políticas interessantes de uma forma geral, mas alguns atores têm se destacado. A Paraíba vem há anos investindo na formação de seus profissionais em ações ao enfrentamento à política de gênero. O Ministério Público do Acre tem protagonismo com o Observatório de Violência de Gênero que criou um feminicidômetro, com dados detalhados sobre os feminicídios e as tentativas de feminicídio. E eles mobilizam a rede toda. Fui a um evento no Acre na semana passada, em que estavam a Patrulha Maria da Penha municipal de Rio Branco, a delegada da Delegacia da Mulher, desembargadoras, juízas, promotoras, movimentos sociais. O Acre já foi o Estado de maior taxa de feminicídio no Brasil, mas está conseguindo baixá-la, enfrentando desafios significativos, até pela questão geográfica e com boa parte das vítimas sendo indígenas, inclusive. Esse é um trabalho exemplar.

Outra experiência a ser citada é a da Acadepol (Academia da Polícia Civil de São Paulo) que tanto do ponto de vista da formação da área de gênero, como do protocolo sobre como se investigar feminicídio, é interessantíssima. Demorou muito para começarem, mas no momento em que assumiram isso como uma prioridade, eles estão se destacando. Outra experiência interessante é o da Patrulha Maria da Penha da Bahia que foi uma das pioneiras. Aprenderam com a Brigada do Rio Grande do Sul e se saíram melhor, o que fez toda a diferença na fiscalização do cumprimento das medidas (protetivas), respeitando a autonomia da mulher.

Temos um projeto documentado pela equipe do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que se chama Casoteca FBSP de Práticas Inovadoras (acervo de práticas, ações e projetos desenvolvidas pelas Polícias e Guardas Municipais e documentadas) com mais de 50 inciativas.

Geledés – Em que medida a facilitação do acesso às armas e o discurso de ódio contribuem para o aumento do feminicídio no Brasil?

Sem dúvida tem potencial para aumentar o feminicídio, inclusive a longo prazo e fazendo com que não haja condições de se prever qual será o impacto no futuro. Se formos pensar em toda a literatura internacional e os próprios formulários de risco que o Brasil adotou, sabemos que se o agressor tem acesso a armas, isso por si só já aumenta o risco de feminicídio.

Geledés – De acordo com o Anuário Brasileiro de 2023, as mulheres negras são as principais vítimas das violências de gênero no Brasil, representando 66,9% dos casos registrados. Deveria haver políticas públicas voltadas a esta população? Se sim, quais tipos de política?

Sempre que estamos falando de violência, em especial a violência letal, precisamos ter políticas mais focalizadas. A mulher negra e periférica é aquela mais vulnerável à violência de gênero. E mesmo que ainda a mulher branca de classe média também sofra de violência doméstica, ela tem muitas vezes autonomia financeira ou uma rede de apoio ferramental que a ajuda sair desta situação. Enquanto que mulheres com baixa renda e que vivem em situação de vulnerabilidade social, e muitas vezes têm filhos, têm muita dificuldade em sair do ciclo da violência, seja por não terem autonomia financeira, seja por terem dependência emocional, porque o feminicídio no Brasil acontece em situação domiciliar. Sendo assim, precisamos de políticas públicas localizadas que sejam capazes de associar a política social ao acolhimento necessário, à transferência de renda, medidas que apoiem essas mulheres para a profissionalização, mas também que estejam ligadas à rede de saúde. Isso porque nunca sabemos como essa mulher vai chegar (à rede), com diabetes, pressão alta e uma série de problemas de saúde decorrentes da violência que elas sofrem em casa e não são lidas nessa chave. Por isso a necessidade de que essas políticas localizadas sejam articuladas em redes, porque apenas uma pequena porção dessas mulheres chega até a delegacia. A maior parte das vítimas de feminicídio sequer tinha um B.O. contra o agressor ou uma medida protetiva de urgência. Normalmente, elas nem alcançam o sistema de justiça.

Geledés – Ainda segundo o Anuário Brasileiro de 2023, todos os tipos de violência contra a mulher aumentaram no país. Qual a razão disso e quais são esses tipos de violência?

Confesso que esta é uma questão que tenho mais perguntas do que respostas. Quando a gente coteja os dados da violência contra a mulher e a violência contra a criança, percebemos que há um aumento da violência intrafamiliar, dos crimes que acontecem no lar. No ambiente doméstico, é difícil de desassociar isso da pandemia. Ainda vai levar um tempo para entendermos todos os impactos causados pela pandemia, seja na área educacional para a criança que está sendo alfabetizada ou para a mulher que sofre a violência doméstica.

Porém, fico com a impressão que determinados comportamentos se acirraram como as violências que já estavam presentes. Alguma coisa mudou no lar. Tanto é que temos mais crianças vítimas de maus tratos e mais casos de mulheres vítimas de violência doméstica. Claro que também podemos trabalhar com a hipótese de que as mulheres estão mais encorajadas a fazer denúncias, mas não podemos esquecer que houve aumento de crimes contra mulheres, feminicídios, e tentativas de feminicídios, que revelam um aumento da violência contra elas. Portanto, por mais que haja mais notificações, as mulheres também estão morrendo mais e sofrendo mais violências de uma forma geral.

Geledés- Existe uma repetição de estereótipos nos julgamentos em que as mulheres são vítimas, ou mesmo acusadas. Como avançar no sistema judiciário para que haja justiça na condenação dos acusados?

Essa questão não ocorre apenas no julgamento judicial, mas se inicia no Boletim de Ocorrência. Tem muitos Estados brasileiros que não classificam como feminicídio os casos em que mulheres são mortas por companheiros que eram faccionados. O companheiro é faccionado, atua no mercado do crime do narcotráfico, porém se ela morreu em decorrência de violência doméstica, ela deveria ser vítima de feminicídio e não de homicídio doloso, como se isso estivesse relacionado às dinâmicas ilícitas em que atua o parceiro íntimo.

Portanto, esses estereótipos rondam todos os atores do Sistema de Segurança Pública e do Sistema de Justiça no país. Para isso, temos diretrizes sobre como investigar, como julgar os feminicídios. O que falta é avançarmos nessas formações para desconstruirmos essas culturas. Embora haja um avanço normativo e legal e materiais pedagógicos à disposição, muitas vezes é difícil dizer a um juiz que tem 20, 30 anos de profissão, que ele precisa julgar dentro da perspectiva de gênero. Então esse é o nosso desafio. A mesma coisa ocorre com um investigador da polícia que está há 20, 25 anos trabalhando. Esse é o próximo passo que precisamos ser capazes de dar.

Geledés – O stalking (perseguição violenta ameaçando a integridade física e psicológica da vítima) é um fenômeno que cresce com aumento de adesão às redes sociais. De que forma as Big Techs deveriam participar de medidas de prevenção a esse tipo de violência e como deveriam agir em casos de agressões?

É uma ótima pergunta, mas não sei se tenho resposta para ela. O debate do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta semana sobre a responsabilização das redes sociais por violências e incentivo a elas precisa incluir o stalking. As redes precisam ser responsabilizadas não só por isso como também por vazamentos de situações íntimas. É um tipo de crime que cresce e está acontecendo nos dois mundos: no online e no offline. Normalmente as redes sociais não respondem a isso e se ficarmos dependendo de que a polícia resolva esse tipo de situação, ficará muito difícil resolver esse problema. Portanto, precisamos sentar e dialogar com as redes sociais para que tenham protocolos sobre os diferentes tipos de violência de gênero que podem ocorrer (nesses meios). Apesar de haver já protocolos sobre publicação de imagens, eles não são suficientes. Eu que trabalho com crime vejo que não faltam nas redes vídeos de meninos cortando cabeças em disputas de facções. Já vi inclusive um vídeo de uma menina sendo decapitada porque se envolveu com uma pessoa de uma facção contrária ao parceiro. Portanto, de forma geral, as redes sociais precisam ser responsabilizadas por esses vídeos de violência.

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