Estamos piores do que há um ano, diz jurista sobre situação dos negros no Brasil

Mestre em Direito e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Marcos Queiroz acabou de chegar aos Estados Unidos para um período de nove meses na Universidade de Duke, na Carolina do Norte, como parte de seu doutorado. Neste Dia Internacional contra a Discriminação Racial, celebrado em 21 de março, passado um ano do início da pandemia no Brasil e quase um ano após as manifestações antirracistas que se espalharam pelo mundo após o assassinato de George Floyd nos EUA, ele falou à CNN Brasil sobre alguns dos temas mais urgentes da sociedade brasileira em relação à questão racial.

Para o jurista, autor do livro “Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro: a Experiência Constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana”, por mais que tenha havido algumas conquistas em termos de representatividade, houve um retrocesso em relação ao combate à desigualdade. Uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), por exemplo, mostrou que 71% das 8 milhões de pessoas que perderam o emprego entre o primeiro e o segundo trimestres de 2020 eram negras.

“Tem um negro lá no jornal, na mesa redonda de futebol. Mas os negros estão morrendo no Brasil, não têm direitos, não estão sendo vacinados. Do ponto de vista simbólico pode até ter tido avanço, mas do ponto de vista social estamos piores do que estávamos há um ano”, disse.

Ele observa que o grupo mais afetado pela insuficiência de políticas econômicas são mulheres negras. “São elas que giram a economia brasileira e são muitas vezes a fonte de renda das famílias, mas não há política para elas”, critica.

“Como conviver com esse paradoxo? Cada vez mais há mulheres e homens negros ocupando espaços, ainda que pouco, mas somos os que estão tendo as suas vidas destruídas. Essa é uma discussão absolutamente simbólica, porque, do ponto de vista real e material, o Brasil está pouco ligando para as pessoas negras”, afirma Queiroz na seguinte entrevista:

CNN Brasil: Como você vê o aprofundamento das desigualdades raciais causado pela pandemia?

Marcos Queiroz: Sou apaixonado pelo Brasil, não pretendo ficar nos Estados Unidos, mas é uma sensação de diferença brutal em relação a esse país. Não vou dizer que não mudou desde o assassinato do George Floyd e com os sucessivos assassinatos que aconteceram no Brasil, desde o caso do João Pedro. Houve uma tendência da mídia de querer incorporar esse debate, que estava acumulado na sociedade brasileira, por parte do movimento negro, parte dos intelectuais. Mas, ao mesmo tempo, com um certo limite. Qual discurso é possível? O da representatividade, o do racismo cotidiano, o da discriminação racial.

Muitas vezes, as pessoas negras não conseguem falar de pautas que são urgentes para a população negra. Como no caso agora na pandemia. As pessoas negras estão naqueles espaços para referenciar, por exemplo, ou criticar de maneira superficial o modelo econômico que a gente tem no Brasil, que afeta diretamente a população negra.

O Silvio [Almeida, jurista e Doutor em Filosofia e Direito] falou isso em entrevistas: a austeridade fiscal é racista. Vai matar pessoas negras, pobres, num país como o nosso.

“O problema da desigualdade racial no Brasil é extremamente profundo. E a gente não está tocando nem a epiderme disso”
Marcos Queiroz, mestre em Direito e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP)

Mas considera que houve algum avanço?

Tem um negro lá no jornal, na mesa redonda de futebol. Mas enquanto isso os negros estão morrendo no Brasil, não têm direitos, não estão sendo vacinados. Do ponto de vista simbólico pode até ter tido avanço, mas do ponto de vista social estamos piores do que estávamos há um ano. Por exemplo, meu pai, de 72 anos, vai ser vacinado agora, mas correu um ano inteiro o risco de morrer, porque não pôde ficar em casa, ele tinha que trabalhar.

Algumas empresas passaram, depois das manifestações de 2020, a adotar medidas de promoção da diversidade. O movimento negro no Brasil abriu uma nova agenda de luta antirracista?

O que está sendo feito por essas empresas em geral? É o que se chama de compliance, é um termo jurídico. Ele não está pensando na população negra. Quando a gente vai estudar compliance dentro dos mecanismos jurídicos e econômicos, não está pensando nos grupos discriminados. Ele existe para proteger o capital da empresa diante de novas demandas que podem ser colocadas pela sociedade, entre elas questões que envolvem a discriminação racial, de gênero, homofobia, entre outras.

Por mais que possa ser importante essa disputa interna, ainda mais num país onde a desigualdade racial é brutal, ela tem que ser transparente também. Quando você vai fazer parte de um compliance ou comitê de diversidade de uma empresa, tem que dizer que ali o principal objetivo é preservar o capital daquela empresa. Isso tem que ser feito inclusive para as pessoas entenderem qual é o tipo de agenda que está sendo feito, que está virando um grande nicho no movimento negro.

As pessoas estão se capacitando para lidar com isso. Jovens lideranças negras estão indo para esse lado de tentar dentro das empresas privadas fazer essa disputa. Ela é importante, mas também captura a pauta.

Como a pandemia está atingindo as pessoas racializadas, as regiões periféricas?

Muitos de nós estamos com uma sensação de impotência. Todos os dias a gente lida com absurdos no nível de uma novela do Gabriel García Marquez, coisas do realismo fantástico do lado do avesso, do lado ruim, do pesadelo, e não do sonho. Tem uma questão que o nosso presidente deixou clara lá no início da pandemia: vai morrer de fome ou vai morrer de vírus. É essa a política no Brasil.

As pessoas que giram esse país, que são os trabalhadores do setor de serviços, estão tendo que escolher desde o começo da pandemia se vão morrer de fome ou de vírus. Não tivemos uma política estrutural, de arranjo econômico, de remanejamento do Estado, da nossa estrutura produtiva para lidar com o que estava se anunciando. Eu sempre falo que o [presidente Jair] Bolsonaro é um sintoma de um país que embarcou em certas formas de conceber o que são direitos fundamentais, cidadania, qual é papel do Estado e qual é o lugar da economia no Brasil.

Quais saídas possíveis você enxerga?

A primeira questão é repensar o lugar que a gente está dando para o Brasil neste momento. O Brasil foi tomado talvez pela geração de pessoas mais medíocres em todos os lugares possíveis. É uma imposição de uma mediocridade. E essa mediocridade, do ponto de vista intelectual e político, está afetando a própria concepção que a gente tem do país.

O primeiro passo é retomar a ideia de que o Brasil pode ser diferente do que ele é. Como Darcy Ribeiro falava, e hoje em dia o Mangabeira Unger fala também, há uma aniquilação de outras imaginações para o Brasil. A indignação acho que é o primeiro passo.

“Se a gente quer colocar o Brasil de novo em qualquer trilho, a gente tem que trazer a indignação e a emoção”

Como vê as mulheres negras, especificamente, nesse contexto?

O setor mais afetado pela ausência de políticas econômicas, ou por medidas muito fracas por parte do estado brasileiro, é o grupo de mulheres negras. São elas que giram a economia brasileira e são muitas vezes a fonte de renda das famílias, mas para elas não tem política.

Como conviver com esse paradoxo? Cada vez mais a gente vê mulheres e homens negros ocupando espaços, ainda que pouco, mas, ao mesmo tempo, somos os que estão sendo afetados e tendo as vidas destruídas. Essa é uma discussão absolutamente simbólica, porque do ponto de vista real e material, o Brasil está pouco ligando para as pessoas negras.

Muito se fala que o brasileiro é passivo. O que acha dessa visão? Para você, é uma verdade ou um mito?

Para mim, é um grande mito. Inclusive a gente pega agora: cinco pessoas acabaram de ser presas em Brasília por terem se manifestado contra o presidente. Se a gente segue jornais de periferia, rádios comunitárias, escuta rap, sabe que todo dia nas periferias do Brasil tem protesto. É protesto queimando pneu, fechando rua. Por motivos diversos, de uma linha de ônibus não funcionar, um assassinato. O problema é que não se noticia.

“Aqui se noticia muito mais um panelaço nos bairros centrais do que protesto em periferia”

Tem uma narrativa histórica, que vem desde o século XIX, com nosso Romantismo, e Gilberto Freyre, dizer que há uma acomodação, confraternização social e racial, que tem um papel ideológico de encobrir a realidade. E ideologia não nasce da cabeça das pessoas, ela é reafirmada com práticas materiais de invisibilização. E aí tem um outro elemento calibrando isso: o Brasil tem um dos sistemas de segurança pública mais repressivos e autoritários do mundo. Fala-se muito que é um entulho da ditadura, mas é um entulho da escravidão. O que a gente tem no Brasil é uma extensão e uma institucionalização do Estado dos pelourinhos, das casas-grandes e das cidades do Brasil Colonial e do Brasil Império.

Além dessa mitologia de que o brasileiro não protesta, é passivo, a gente ignora a extrema repressão que o aparelho do Estado e as suas forças paralelas, como as milícias, hoje em dia, exercem sobre a população brasileira. Em poucos países no mundo houve uma greve como a nossa dos aplicativos no ano passado. A gente esquece muito fácil das coisas. As pessoas fora dos ar-condicionados, quando você vai nas ruas e conversa com elas, vê que há um ódio difuso na sociedade brasileira. O que a gente vai fazer com esse sentimento é a pergunta.

Que medidas legais podem ser tomadas para que as corporações reformulem os códigos de conduta e passem incorporar a luta antirracista? E qual o papel do Direito na manutenção da violência policial ao racismo estrutural?

No Poder Judiciário, nenhum juiz acha que é servidor público. Tem um magistrado amigo meu, o Fábio Esteves, que fala que “o juiz acha que ele é uma multinacional” – ele manda e desmanda, mas não se enxerga como um prestador de serviço público.

A lógica da Polícia Militar, inclusive o militarismo, tem muito dessa ideia das patentes e a relação não cidadã com a população, mas uma relação com um inimigo, e isso é enraizado na própria forma de ocupar territórios de guerra dentro da cidade, e geralmente esses territórios são as periferias e os bairros negros.

O Poder Judiciário no Brasil legitima a autoridade policial. É o que nós chamamos no Direito de buraco de minhoca do processo penal. O inquérito policial baseado na autoridade, nas declarações da polícia, e o judiciário em geral só dá o aval ao que foi escrito ali; ele não se pergunta como foi a abordagem, em qual contexto, se há testemunhas, ou seja, o Poder Judiciário não só corrobora como ele não controla – ele se exime dessa responsabilidade.

Do ponto de vista legislativo, o que pode ser feito? Há muitas questões do ponto de vista normativo que são feitas, hoje cada vez mais nota-se cursos de formação antirracista. Vai alguém como eu para uma escola de formação da polícia para dar um curso sobre o que é o racismo, o que é o preconceito, o que é estereótipo e o gradiente de cor, o que é o Kit Peba – muito colocado pelas polícias: o bermudão, a chinela, o boné, o bairro, a hora e a cor da pele, evidentemente – dizem se ali é um suspeito ou não, como isso viola direitos. Isso vai mudar alguma coisa? Não. Vai ter um impacto, mas é muito pouco do ponto de vista de formação.

Tem questões concretas que vão impactar: a primeira é a desmilitarização da polícia. Quando o Brasil era um país em que existia uma mínima discussão pública, ela chegou a ser colocada. Hoje a gente caminha para o contexto oposto. Se não tivermos mudança estrutural, vai ser como enxugar o gelo.

O Tribunal Superior Eleitoral determinou a reserva proporcional de recursos eleitorais para negros, mas diversas lideranças partidárias, dos mais variados espectros políticos, se opuseram à medida. Como as lideranças negras e os intelectuais podem se organizar para evitar que um direito assegurado passe a ser preenchido com candidaturas laranjas pelos líderes partidários como já acontece com as mulheres?

Os problemas são muitos. Isso já começa nos lugares em que os partidos selecionam futuros candidatos mais ideológicos com construção do partido. Lá na base, com juventude e movimento social já há uma seleção, uma peneira. O racismo está em tudo, ele é uma peneira para entrar no mercado de trabalho, e também é dentro dos partidos, [quando se pensa em] quem é aquele cara para virar um potencial candidato.

Começa pela peneira racial, uma expressão do (sociólogo) Clóvis Moura, mas que também está no próprio programa dos partidos políticos. Não há nenhum partido no Brasil, e isso inclusive entre os partidos de esquerda, que consiga trazer de maneira programática o enfrentamento ao racismo. Incomoda falar de racismo. Você vai pagar por aquilo e os partidos não querem se comprometer porque sabem que isso pode ter um custo eleitoral.

Existem duas coisas. Primeiro, essas micropráticas do racismo, do peneiramento, de quem vai ser incentivado a ser candidato, quem vai ter ajuda partidária para virar um quadro para você conseguir se expressar publicamente. Tudo se forma, o político não nasce de uma hora para outra.

A outra está nos programas dos partidos e é geral, de alguma maneira todos os partidos ainda são um pouco embebidos no mito da democracia racial. Os negros sempre estiveram engajados, mas, quando chega nesse momento do debate institucional e público, há constrangimento também. Há uma ideia, no semblante muitas vezes, de se criar a figura pública do partido com uma pessoa branca, uma pessoa que possa ser mais aprazível e passe seriedade, racionalidade e confiança.

Do ponto de vista institucional, há uma série de dificuldades, a primeira é o candidato negro conseguir continuar como deputado por muito tempo. A gente tem alguns casos, por exemplo, de figuras do PT, que foi um partido que conseguiu colocar negros na política em um momento – mais do que a média, não muitos -, mas que não consegue repetir os mandatos, enquanto a gente vê brancos há 20 anos no parlamento.

“Quando o negro consegue virar um quadro partidário, consegue se projetar como candidato, começa a ter um impacto na política, aí vêm as ameaças, inclusive de morte”

Quando o negro consegue virar um quadro partidário, consegue se projetar como candidato, começa a ter um impacto na política, aí vêm as ameaças, inclusive de morte. A Marielle [Franco] pagou com a própria vida essa afronta que é estar na política, e vários outros, como o vereador do Paraná Renato Almeida Freitas, que também está sendo ameaçado de morte por policiais. Então, essa é a outra barreira que se coloca. Não só a desigualdade, mas a violência se expressa primeiro nos negros.

Os negros anunciam o que vai virar a sociedade brasileira. Quando as perseguições começam em cima da Marielle e ela vem a ser assassinada, tem um anúncio do que o Brasil ia virar. Quem não viu aquela morte daquela maneira viu muito mal.

O negro é sempre o bode expiatório, ou serve de sacrifício. Serve para passar uma mensagem. Não gosto de fazer essas comparações, mas na escravidão, se você fugir, afrontar o senhor ou quiser pleitear melhores condições nessa plantation, você vai ser torturado que nem aquele que está no pelourinho. Isso passava uma mensagem não só para quem era escravizado, mas para toda a sociedade, de qual era os lugares sociais de cada um. A morte da Marielle é dizer isso: ‘o Brasil daqui pra frente vai ser isso, se alguém quiser ir além, como ela tentou fazer, talvez vá ter que pagar com a própria vida’.

Então eu acho que não há comprometimento partidário, por mais que tenha mudado um pouco. O que a gente viu nas últimas eleições foi a resistência, inclusive de partidos progressistas, em adotar cota. Além das fraudes que existiram, e não houve processo de candidatos que a gente sabe que são brancos, mas entraram pela cota partidária. Não se faz nada: ‘O cara foi eleito. Vamos tirar ele de lá agora?’. Não há comprometimento. Também não dá para os negros fingirem que não dá para fazer nada. A gente tem que se engajar.

Hoje se diz muito que está péssimo e não tem como fazer nada porque os partidos são racistas, mas você vai fazer o quê, irmão? Vai ficar olhando acontecer?

Sempre se fala em Marielle, mulher, negra, de periferia, bissexual, mas a Marielle também morreu por estar filiada a um partido político e porque era vereadora. Ela falou que os negros precisavam se engajar na política, têm que disputar esse espaço, por mais difícil que ele seja. Não dá para ficar no isolacionismo. A gente tem que disputar esses espaços, e não só da política institucional, mas da política em geral.

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