Estudo mostra tratamento adequado a anemia falciforme

Márcia Neri

Cem anos se passaram desde o primeiro diagnóstico da anemia falciforme. Ao longo desse tempo, pesquisadores de todo o mundo se dedicaram a encontrar terapias que ao menos amenizassem os sintomas da doença. A cura ainda parece distante, mas alguns estudos em direção a uma terapia mais efetiva se mostram promissores. É o caso de uma pesquisa realizada no Laboratório de Hemoglobinas e Genética das Doenças Hematológicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São José do Rio Preto. Intrigado pelas diferentes formas de manifestação da patologia, o grupo do interior de São Paulo procurou entender por que indivíduos acometidos por ela reagem de maneira tão diferenciada. A pesquisa, apresentada no 1º Congresso Global de Anemia Falciforme, realizado na África em julho último, pode mudar parâmetros e se tornar referência para o desenvolvimento de novas terapias.
A anemia falciforme é uma das doenças genéticas mais frequentes no Brasil. Conhecida como uma enfermidade que atinge principalmente a população negra, em terras brasileiras ela faz vítimas de todas as etnias, devido à grande miscigenação do país. Trata-se de uma mazela hereditária e de fundo genético. O hematologista Alexandre Nonino, do Centro de Câncer de Brasília (Cettro), explica que ela altera a hemoglobina, molécula responsável por transportar o oxigênio dos pulmões para os tecidos. “Essa alteração induz uma mudança no formato das hemácias e provoca dois grandes problemas: a anemia crônica e a dificuldade dessas células para circularem pelos vasos sanguíneos, provocando dor em diversos órgãos e aumentando o risco de acidentes vasculares cerebrais e de tromboses”, detalha. Os doentes falciformes também ficam mais expostos a males infecciosos, úlceras difíceis de cicatrizar, fadiga e icterícia.

O tratamento disponível hoje visa reduzir a anemia e o número de crises. A hidroxiureia, um quimioterápico que aumenta a taxa de hemoglobina fetal e dilui o índice de hemácias falciformes, pode ser receitada aos pacientes que apresentam mais de um sintoma ou complicação. Quando a doença se mostra mais intensa, são necessárias transfusões de sangue. A pesquisa da Unesp buscou descobrir quais interferências levam a essa graduação na manifestação de sintomas, já que os indivíduos portam o mesmo defeito na hemoglobina. “Sabemos que a co-herança de outros traços genéticos é um fator que influencia. Buscamos, então, investigar outros polimorfismos, o estresse oxidativo e a resposta dos doentes à hidroxiureia, que é um importante antioxidante”, detalha Cláudia Bonine, bióloga da Unesp que coordenou o estudo.

A pesquisa analisou o comportamento de 50 adultos durante um ano. O resultado apresentado na África mostrou que os anêmicos falciformes que associam a ingestão de hidroxiureia ao quelante de ferro — droga que ajuda a tirar o excesso desse elemento do sangue — tiveram uma diminuição significativa no estresse oxidativo quando comparados com pacientes que não fazem uso desses medicamentos. A pesquisadora observa que, cientificamente, essa análise nunca havia sido feita. Por falta de prescrição ou por não aderirem ao tratamento adequado, muitos pacientes tomam apenas ácido fólico e passam por transfusões de sangue.

O grupo da Unesp também rastreou características genéticas envolvidas com o metabolismo do ferro e descobriu alta frequência de uma mutação no gene HFE. Tal alteração leva à maior absorção do ferro, causando prejuízos ao fígado, aos rins, ao pâncreas e ao coração. “O rastreamento proporciona o direcionamento do tratamento, proporcionando uma terapia individualizada”, diz.

Desconhecimento

O diagnóstico precoce minimiza os prejuízos trazidos pela patologia. Antes da obrigatoriedade do teste do pezinho, isso não ocorria na maioria dos casos. A dona de casa Rita de Cássia Silva, 49 anos, não sabia que ela e o marido tinham o traço falciforme (quando a pessoa herdou de um dos pais apenas um dos genes da doença, e pode ser assintomática por toda a vida). Dos quatro filhos gerados pelo casal, dois nasceram com a doença. “Não conhecia o mal. Camila recebeu o diagnóstico somente aos 4 anos. Até então, os médicos diziam que ela tinha reumatismo. Nessa época, estava grávida de Fábio, que também herdou a doença”, relata.

Os únicos medicamentos indicados aos dois foram injeções de benzetacil e ácido fólico. Camila sofre até hoje com dores nas pernas e nos braços. Fábio, hoje com 20 anos, teve mais problemas. “A doença foi mais cruel com ele, vítima de cinco AVCs (acidentes vasculares cerebrais) quando pequeno. As sequelas afetaram a fala, a mastigação e o aprendizado. Fábio depende de mim para se alimentar, tem convulsões por conta dos danos neurológicos e necessita de constantes transfusões de sangue. Sua vida foi completamente comprometida”, lamenta Rita.

A estudante de direito Janaína Castro Marques, 26 anos, também conhece muito bem as dores provocadas pela anemia falciforme, responsáveis por deixá-la internada por pelo menos uma semana a cada mês. “Já foi pior. Meu diagnóstico não foi precoce, não tenho aparência anêmica. Na infância, passava 20 dias por mês internada. Fiz inúmeras transfusões. Hoje, não preciso mais. O ácido fólico e a hidroxiureia me deram mais qualidade de vida. Também tenho encontrado alento para as dores na acupuntura”, conta.

Em 2009, a Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea concluiu um consenso que inclui a anemia falciforme entre as doenças com recomendação para transplante de medula óssea. O procedimento ainda não consta na lista de indicações do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo o hematologista Luís Fernando Bouzas, diretor do Centro de Transplante de Medula Óssea do Instituto Nacional de Câncer (Inca), existem 30 mil doentes falciformes no Brasil. “O transplante ainda é um procedimento de risco. Cerca de 20% dos transplantados morrem depois de receberem a nova medula. Por outro lado, a maioria das pessoas com anemia falciforme, se bem tratadas, têm longevidade parecida com a de indivíduos saudáveis”, aponta.

Por enquanto, a conduta é prescrita somente a pacientes com complicações graves. Crianças que já tiveram um AVC, por exemplo. Bouzas adianta que o Ministério da Saúde tem trabalhado na criação de um protocolo nacional para atender esse tipo de doente. A medula será transplantada em centros de referência. “Os resultados serão avaliados cientificamente. Acredito que a burocracia para viabilizar o financiamento desse estudo será resolvida ainda este ano”, completa.

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Abradfal,   Associação Brasiliense de Pessoas com Doença Falciforme

Fonte: Correio Braziliense

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