Eu não sou uma guerreira

Queria não ter essa sensação de esforço, porque, afinal, a vida me dá poucas oportunidades

Eu não vou romantizar, dizer que todo tempo é tempo, que não existe atraso no Universo, que tudo o que vivi me preparou para este momento ou que tudo acontece como tem que acontecer, no tempo de Exu. Apesar de eu repetir essas frases para mim mesma e saber, ou pelo menos tentar saber, que cada trajetória é única, eu queria, sim, que tivesse sido mais fácil.

Eu queria ter aprendido inglês brincando, na escola, com o cérebro relaxado e jovem. Queria não ter essa sensação de esforço, porque, afinal, a vida me dá poucas oportunidades.

Essa oportunidade eu mesma cavei: decidi ano passado que faria meu primeiro intercâmbio, finalmente, aos 35 anos, um desejo que tenho desde os 15. Fui atrás da escola, paguei parcelado em cinco vezes, comprei a passagem, fiz minhas malas. Com todo o medo do mundo, eu mesma vim para a África do Sul com as minhas pernas.

E apesar de ter feito “eu mesma”, isso só foi possível por tudo e todos que vieram antes. Não há nada de meritocrático aqui, honro meu esforço, mas penso sempre em “por que isso não foi mais fácil?”

As trajetórias de esforço são sempre louvadas, especialmente os esforços “tardios” — quem nunca ouviu a história da senhora negra que era analfabeta e se formou em Direito aos 68 anos? Eu sempre quis ganhar o mundo, é óbvio que não há tempo perdido, até porque, nesses 20 anos enquanto eu não fazia meu intercâmbio, eu fiz muitas outras coisas. Nossa, eu fiz muita coisa!

No 1º de Maio, Renata Martins, diretora e roteirista, fez um post importante, contando que entrou na universidade aos 27 anos, dirigiu o primeiro curta aos 32, entrou na segunda sala de roteiro aos 40, escreveu uma série autoral aos 43, que foi ao ar quando ela tinha 45. Renata é premiadíssima e como são poderosas histórias como essa, pra gente lembrar que nunca é tarde. Mas por que a Renata precisou fazer tanta coisa antes disso?

Lázaro Ramos escreveu em seu LinkedIn em março: “Não nascer herdeiro de dinheiro e redes de relações, no futuro, lhe roubará um tempo precioso.” Esse roubo de tempo é das piores sensações pra mim. Esse tempo é algo que, mesmo que você construa um futuro brilhante, nunca será devolvido.

“Desde cedo a mãe da gente fala assim: ‘Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.’ Aí, passados alguns anos, eu pensei: Como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado?”, os Racionais MC’s já perguntaram e já responderam.

Sabe o que dá mais raiva? A valorização da luta, do caminho das pedras, de “que o sofrimento alimenta mais a sua coragem”. Como podemos chamar “história de vida bonita” alguém que precisou vender bala no sinal para pagar a faculdade, alguém que descobriu que gostava de ler porque teve contato com livro, pela primeira vez, dentro de uma penitenciária? O criador de conteúdo Deivison Anisio tem um vídeo sobre isso, você ri e chora ao mesmo tempo.

Eu sei que eu, Renata, Lázaro, Deivison e tantos outros somos o sonho mais louco dos nossos ancestrais. Mas eu tenho certeza, mesmo sem conhecê-los, que nenhum de nós quer precisar matar um leão todos os dias para fazer coisas simples para os outros. Já está mais do que provado que o que faz uma pessoa avançar profissionalmente, especialmente quando se é jovem, são suas redes e repertório. Eu não sou uma guerreira, eu sou só uma mulher negra que, por não ter acesso a determinadas redes e repertórios, precisa fazer um esforço sobre-humano

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