O enfrentamento ao racismo no Brasil exige tanto inventividade quanto persistência. É luta incansável, porque o inimigo não dá trégua, ora se escancara, ora se disfarça. Medida em tempo, é caminhada de séculos. A Lei Áurea, assinada há 135 anos, pôs fim a quase nada. A escravidão resiste em ambientes de trabalho no campo e nas cidades. A dominação dos corpos é concreta em presídios e na violência homicida; a perseguição religiosa, nos ataques aos terreiros de umbanda e candomblé; o desprezo à cultura, na desvalorização dos artistas.
Haja paciência e talento e determinação e ativismo. E humor. Afinal, é preciso achar graça. Se não for rir, não vá ao teatro, desligue o streaming. Silencie, esqueça a lei. O Brasil criminalizou a discriminação racial há décadas. Faz poucos meses, equiparou em lei racismo e injúria; qualificou o preconceito travestido de torcida, piada, violência religiosa. Mas ninguém é preciso quando discrimina e ofende. Quem “se sentir” ofendido que lute.
Faz duas décadas, foi promulgada a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de História e cultura afro-brasileiras. De mais de mil secretarias de Educação mapeadas no país, 71% não obedecem ou realizam ações esporádicas, segundo estudos dos institutos Alana e Geledés. O cumpra-se virou brincadeirinha.
A lei de 1888 pôs fim à escravidão, mas neste ano, até o início de maio, 1.201 pessoas foram resgatadas de condições análogas às praticadas nos tempos da Colônia e do Império. Em média, dez alforrias por dia, informou o Ministério do Trabalho. Livraram-se de alojamentos nos moldes de senzalas, jornada excessiva, remuneração insuficiente ou inexistente, castigos físicos e tortura em vinícolas do Rio Grande do Sul, lavouras de cana e usinas de álcool em Goiás.
Em residências Brasil afora, há tantos casos de trabalho análogo à escravidão que o Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos passou a receber denúncias. No mês passado, a Inspeção do Trabalho iniciou campanha pela formalização das trabalhadoras domésticas — no feminino, porque são mulheres a quase totalidade da categoria. A PEC de 2013, que estendeu a elas os direitos da CLT, completa uma década com 75% sem carteira assinada ou contribuição previdenciária.
Empresas de porte internacional são flagradas em abordagens orientadas pela cor da pele, tal como fazem as instituições policiais. Vão do constrangimento ao abuso, da tortura ao homicídio. Em novembro de 2020, João Alberto de Freitas foi espancado até a morte por seguranças de uma loja Carrefour, em Porto Alegre. O crime mobilizou um grupo de notáveis, entre os quais o hoje ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, e instituições (MPF, MP-RS, Defensoria Pública gaúcha, DPU e MPT) a firmar com a varejista um termo de ajustamento de conduta de R$ 115 milhões para elaboração de políticas internas de enfrentamento ao racismo e de reparação coletiva.
Quase três anos depois, a professora Isabel Oliveira tirou a roupa e circulou de calcinha e sutiã numa loja do Atacadão, do mesmo grupo, em Curitiba, em protesto contra um segurança que a perseguia. A cena, de tão violenta e humilhante, chamou a atenção do presidente de República. Na reunião ministerial pelos cem dias de governo, Lula citou o episódio. Semanas depois, o Brasil assistiria às agressões de seguranças de outra loja, desta vez na Bahia, contra o casal Jamile e Jeremias. Eles tentaram furtar leite para dar de comer à filha.
A comunidade Imagine a Dor Adivinhe a Cor propôs boicote à rede. O Ministério dos Direitos Humanos passou a trabalhar na política nacional de DH e Empresas, espécie de pacto para enquadrar pessoas jurídicas que, a década e meia da Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, ainda descumprem a septuagenária Declaração Universal. A intenção é começar promovendo reuniões com empresas e entidades. O decreto, alinhado com a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, já recebeu sinal verde do gabinete de Geraldo Alckmin, vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Transita agora por outras pastas da Esplanada.