Eu respeito o seu amém, você respeita o meu axé

O Carnaval 2020 vem com uma alma rebelde. Sinal dos tempos, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, onde, apesar da grandiosidade do espetáculo, que atrai turistas de todo o Brasil e do mundo inteiro, as escolas de samba estão enfrentando cortes significativos nas verbas e restrição de espaços, entre outras dificuldades. Uma verdadeira guerra que o prefeito evangélico Marcelo Crivella, ligado à Igreja Universal, tem travado de maneira sistemática, sem levar em consideração a quantidade de empregos e renda que a festa gera. Por essa razão, a cada ano mais agremiações aderem aos enredos críticos.

Por PAI RODNEY, da Carta Capital

Reprodução/YouTube/ Itaú Cultural

Na homenagem ao babalorixá Joãozinho da Gomeia, a escola de samba Grande Rio apresenta mais que um belo tema: é um grito contra o racismo, a intolerância religiosa e todas as formas de preconceito. De Salvador à Baixada Fluminense, o pai de santo mais famoso do Brasil rompeu os limites da sociedade e do próprio candomblé. Negro, homossexual, ousado, tornou-se à época um símbolo de resistência e escancarou a influência das religiões de matriz africana entre os poderosos da nação.

Mais do que justa, a homenagem resgata a importância da população negra e a presença expressiva dos terreiros na região de Caxias, retratada no enredo como um quilombo, ou seja, um território de resistência. Joãozinho da Gomeia foi uma grande liderança espiritual e política, um Zumbi desses tempos modernos. Foi o primeiro sacerdote a dar visibilidade às práticas do candomblé, estampando capas de revistas e jornais, gravando discos, fazendo cinema e tomando as ruas.

Personagem fundamental na expansão do candomblé no eixo Rio/São Paulo, difundiu seu axé e fez do seu corpo síntese de todos os sincretismos: preto, mulato, índio; angola, caboclo, nagô; católico, juremeiro, macumbeiro. O Brasil sonhado por Jorge Amado, miscigenado e democrático, tinha em Joãozinho da Gomeia sua mais perfeita tradução. Ao mesmo tempo em que resgata o orgulho e a alma caxiense, o enredo vai forjando a identidade de uma escola de samba relativamente nova.

Recupera também um compromisso com causas urgentes, uma vez que a região da Baixada Fluminense é uma das que mais sofre com a atuação das milícias, além das facções supostamente associadas ao neopentecostalismo que perseguem adeptos das religiões afro, invadem e destroem terreiros de candomblé e umbanda. Nesses tempos de “Bonde de Jesus” e “Bandidos de Cristo”, bradar contra a intolerância e o racismo religioso é fundamental. Dessa forma, a escola de samba ainda reassume seu papel de território negro e sua missão política de lutar contra as injustiças.

Numa cena que viralizou nas redes sociais, os componentes da Grande Rio realizam seu ensaio de rua em frente a uma filial da Igreja Universal do Reino de Deus e cantam com empolgação o refrão que diz “salve o candomblé”. Nessa homenagem a um homem que por força da fé escapou das várias mortes que acompanham negros e gays ao longo de sua existência, vemos uma escola que, além de pedir respeito, faz as pazes com sua vocação histórica.

Nesses tempos em que a desonestidade da branquitude usurpa territórios e culturas negras, a Grande Rio devolve seu pavilhão aos orixás e ancestrais e resgata sua alma quilombola. No Rio de Janeiro, a perseguição empreendida pelo bispo prefeito contra as escolas de samba e as tradições do povo negro vem chamando à luta todas as agremiações. As pesadas críticas aos governos municipal, estadual e federal devem marcar o Carnaval 2020 na Marquês de Sapucaí e irritar especialmente Bolsonaro e Crivella.

No Brasil, a grande verdade é que o crescente fundamentalismo religioso ainda vai nos destituir de qualquer humanidade. No ritmo que as coisas andam, a pátria do evangelho, sectária e arrogante, deve erguer-se das falácias de um discurso integralista que finge promover união, mas exclui e execra os que destoam da hegemonia.

Não restará esperança. Só a guerra vai nos redimir. Lutar, resistir, sobreviver é a parte que nos cabe. Afinal, quem são os escravos desse reino torpe? Vassalos, servos, capachos do poder do Senhor, do Deus único, bélico, que odeia o diverso e lança ao fogo do inferno os condenados da terra.

Uma guerra santa, de sutilezas, com armas brandas e brancas. Quem vencerá? Ao que parece, hipocrisia daqueles que matam sorrindo. E dizem que matam para o bem dos que morrem, matam para salvá-los de si mesmos. Almas perdidas em corpos escuros, possuídas pelos demônios que a intolerância impõe e pela distorção e desonestidade de seus algozes salvadores, que os aniquilam ao converte-los.

Um pai de santo é o grande homenageado da Grande Rio. Na Portela, índios não se curvarão diante da violência de capitães e bispos. E um Jesus com a cara dos oprimidos vai desfilar com a Mangueira e denunciar a hipocrisia dos falsos messias. A Beija-flor encerra a festa e vem reafirmar que o povo é o dono da rua e que a rua é de Exu. Então, segura! Abram alas ao Carnaval do protesto e vejam com quanta beleza, alegria e ginga se denuncia os desmandos e se samba na cara dessa gente de bem.

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...