“Ai, miga, sai com esse coronavírus daqui”, ouviu a atriz Ana Hikari, durante uma festa pré-carnaval em São Paulo.
Por Juliana Sayuri, do TAB
“Sua chinesa porca, fica espalhando doença para todos nós” foram as palavras dirigidas à estudante Marie Okabayashi, em um trem do metrô do Rio de Janeiro.
Você não é chinês, né? Não quero pegar coronavírus” foi a pergunta lançada a Leonardo Yamaguti, que trabalha em uma loja de produtos eletrônicos, em Campo Grande (MS).
“Uso de máscaras cirúrgicas; utilização apenas do elevador privativo; e higienização das mãos com álcool gel” foram as condições impostas pelo Edifício Berrini 550, um condomínio empresarial na zona sul de São Paulo, para permitir a entrada de chineses.
“Proibida a entrada de chineses. Não quero que espalhem o vírus”, informa o cartaz de uma confeitaria na província japonesa de Kanagawa, reportou a BBC News Brasil. “Desculpe o inconveniente”, diz o cartaz de um bar nos arredores da Fontana di Trevi, em Roma, que também fechou as portas a visitantes chineses, segundo a agência italiana Ansa.
agr coisa séria:
ontem, no @metro_rio, essa mulher esperou eu me dirigir p porta do vagão para gritar “OLHA A CHINESA SAINDO, SUA CHINESA PORCA”, “NOJENTA” e “FICA AÍ ESPALHANDO DOENÇA PARA TODOS NÓS”. me ajudem a identificar essa racista para fazer um b.o decente :) pic.twitter.com/SYGcnYdjqn— marie (@mrkbysh) February 1, 2020
Diante do surto do vírus 2019-nCoV e da disseminação de fake news sobre a epidemia diagnosticada na cidade chinesa de Wuhan, também viralizaram relatos de episódios de discriminação racial contra asiáticos mundo afora: #JeNeSuisPasUnVirus foi a hashtag iniciada por franceses de ascendência asiática, que rapidamente foi incorporada por estudantes asiático-americanos da Universidade da Califórnia (#IAmNotAVirus) e se alastrou pelas redes sociais. Em bom português, #EuNãoSouUmVírus.
O Instituto Sociocultural Brasil-China – Ibrachina criou uma central de denúncias para reunir relatos, que serão entregues às autoridades brasileiras. Discriminar alguém por sua etnia é racismo e, na letra da lei, racismo e injúria racial são crimes.
“Não é o coronavírus que traz estigma a pessoas asiáticas, é nosso tratamento a elas que revela o estigma e o racismo que sempre tivemos. O coronavírus é só uma maneira débil e bizarra que usamos para tentar legitimar nossos preconceitos”, escreveu a jornalista Flávia Gasi, colunista do TAB.
No Brasil, onde 0,47% da população se declara amarela, segundo dados do IBGE de 2015, o novo vírus explicitou a discriminação racial contra asiáticos no país – um fenômeno velado e pouco discutido.
Apesar dos ares de novidade, a disseminação de declarações racistas é antiga e atualiza preconceitos associados à Ásia, principalmente aos países do Leste Asiático (China, Coreias e Japão, por exemplo) – os estigmatizados “olhos puxados”.
Se o Honda fechar com o Botafogo, vai ser um teste interessante pros estádios.
Asiáticos sofrem preconceito racial. Ponto. Contudo, no Brasil poucos se importam.
Será q alguma torcida rival vai criar música associando japonês com tamanho de pênis ou debochando de olhos puxados? pic.twitter.com/rTEReHljWX
— Felipe Neto (@felipeneto) January 30, 2020
À primeira vista, pode ser inusitado identificar amarelos como alvos de discriminação no Brasil, diante do histórico de injustiça e violência contra negros e indígenas, o racismo estrutural. “Mas é preciso”, ponderou o jornalista Leonardo Sakamoto, colunista do UOL. Eis cinco pontos para contextualizar a discussão.
1. Amarelo não é branco
Branca, preta, parda, indígena e amarela são as cores elencadas nos estudos demográficos do IBGE.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015, 45,22% dos brasileiros se declararam brancos; 45,06% pardos; 8,86% pretos; 0,47% amarelos e 0,38% indígenas.
Identificar-se como amarelo, entretanto, não é simples: muitos de nós, descendentes de asiáticos, crescemos ouvindo que somos brancos, pois não somos socialmente etiquetados como pessoas “de cor”.
Pensando nas matrizes étnicas do país (trianguladas na “fórmula” colonizador branco, índio nativo e negro africano, como faz o clássico “O povo brasileiro”, do antropólogo Darcy Ribeiro), o amarelo não tem vez e, neste não-lugar indefinido, muitas vezes é visto como “quase” branco.
Imigrantes asiáticos (principalmente japoneses) foram historicamente enquadrados num modelo de “embranquecimento” no país, paulatinamente distanciados dos indígenas e dos negros, conta o historiador Jeffrey Lesser no livro “A invenção da brasilidade” (2015). Assim, amarelos não são alvo do racismo estrutural tal como indígenas e negros – e, nesse contexto, episódios de preconceito contra amarelos muitas vezes são minimizados. Mas, como ilustram os relatos recentes de discursos de ódio, não é “mimimi”, é discriminação racial, sim.
Thread didática: por que asiáticos não são brancos?
— a (@hugokatsuo) February 15, 2019
2. Oriente-se
Entre o fim do século 19 e o início do século 20, alastrou-se a expressão “perigo amarelo”, para indicar o risco de invasões de povos do Leste Asiático, principalmente a China, ao Ocidente.
Entre 1882 e 1892 vigorou o Chinese Exclusion Act, que proibiu a entrada de imigrantes chineses aos Estados Unidos. Entre 1905 e 1907 atuou a Asiatic Exclusion League, uma liga para impedir o ingresso de japoneses e coreanos no Canadá e Estados Unidos.
Na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Japão (aliado das potências do Eixo, a Alemanha e a Itália) tornou-se o maior inimigo dos Aliados – na época, muitos imigrantes japoneses foram perseguidos pelas autoridades brasileiras, narra a historiadora Marcia Yumi Takeuchi no livro “O Perigo Amarelo” (2008).
Este foi também o termo escolhido pelo diário francês Le Courrier Picard para tratar do coronavírus em um editorial de fins de janeiro, o que engatilhou uma série de críticas na internet – dias depois, o jornal pediu desculpas.
Ao longo da história, a expressão “perigo amarelo” volta à baila para propagar um tipo de temor aos asiáticos, retratados como bárbaros ou perigosos. Em uma palavra: “exóticos”. Literatura, imprensa e discursos de políticos contribuíram para consolidar essas ideias sobre os “orientais” como os “outros”, destaca o crítico literário Edward Said no clássico “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente” (1978). Essa é a carga da palavra “oriental”, que vem sendo preterida por “asiático” por jovens acadêmicos e ativistas.
3. ‘Não sou chinês, sou ___’
“Exóticos” aos olhos do Ocidente, chineses foram estigmatizados como burros, sujos e selvagens — e surtos contribuíram para a construção histórica desse estigma, pontua o antropólogo Christos Lynteris na coletânea “Yellow Perils” (2018), organizada pelos acadêmicos Franck Billé e Sören Urbansky.
Mas, paradoxalmente, estereótipos elogiosos também foram cristalizados: no pós-guerra, os americanos lapidaram o mito da “minoria-modelo” para se referir a asiáticos ditos disciplinados, inteligentes e introvertidos.
Embora opostos, os discursos se relacionam e hierarquizam: de um lado, tenta-se justificar o desprezo aos “maus” asiáticos (a ideia de chineses animalescos, vivendo em ambientes apertados e caóticos e adeptos de menus inusitados – basta ver a avalanche de fake news relacionando a sopa de morcego à origem do coronavírus na China); de outro, espera-se que os “bons” asiáticos, tão tímidos e “inofensivos”, não vão questionar quaisquer declarações racistas ou bullying por considerá-las “brincadeiras” (tratar todos os asiáticos como “japas”, por exemplo, é um dos mais manjados).
Isso levanta outra discussão delicada, presente nos novos movimentos de jovens asiáticos-brasileiros: tentativas de distanciamento como se fosse demérito descender de certas nacionalidades, como ilustrou o youtuber Leonardo Hwan: “Amarelos BR sendo racistas com chineses. Amarelos BR se colocando longe deles. ‘Eu não sou chinês! Sou (insira outra nacionalidade asian)'”.
4. Oficial ‘ching ling’
Data de 1900 o início oficial da imigração chinesa ao Brasil; a japonesa começou em 1908; a coreana, em 1963. Décadas e diversas gerações depois, muitos ainda são vistos como forasteiros no país, como resumiu a arquiteta brasileira Sabrina Kim, de ascendência coreana, à jornalista Brenda Fucuta, autora do blog Nós, no UOL. “A miscigenação faz parte do Brasil, mas os descendentes de asiáticos ainda são tratados como eternos estrangeiros no próprio país.”.
No dia a dia, o desdém aos descendentes vem disfarçado de “brincadeiras”, como “pastel de flango” (não, não é engraçado, é preconceito linguístico) e “ching ling” (pré-julgando produtos chineses como imitações não-confiáveis, não-oficiais). No fundo, as expressões querem dizer: vocês não são brasileiros, não são bem-vindos.
5. Sinofobia
Descendentes de asiáticos (filhos, netos e bisnetos de imigrantes, nascidos no Brasil) são brasileiros. Esta é a nossa terra. Daí o “bug” quando ouvimos a frase “volta pra tua terra” – por exemplo, quando questionado sobre o livro “Tormenta”, da jornalista Thaís Oyama, o presidente Jair Bolsonaro ter disparado: “Esse é o livro dessa japonesa, que eu não sei o que faz no Brasil”.
Mas é impreciso usar a palavra “xenofobia” (aversão a xénos = estrangeiros) para todos, pois os alvos são, afinal, conterrâneos. “Isso não é xenofobia, porque eu sou brasileira. O cara me julgou pelo meu fenótipo, pela minha raça”, explicou a atriz Ana Hikari no stories sobre seu caso. Talvez a melhor expressão para sintetizar o sentimento anti-chinês que saiu do armário brasileiro é a “sinofobia”, uma mazela tão impressionante quanto o 2019-nCoV.