A experiência da Themis e a sororidade em prática

Na coluna Sororidade em Pauta de hoje, convidamos as meninas da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos para escrever um texto contando um pouco mais sobre os seus projetos, que há tantos anos têm alterado a realidade social de mulheres gaúchas. Como o título do artigo sugere, não basta debatermos a igualdade de gênero, temos também que colocar a sororidade em prática. À luta!

Por Lívia Zanatta Ribeiro e Michele Savicki, no Justificando 

Nas últimas semanas, assistimos as mídias tomadas por notícias relacionadas ao machismo e aos direitos das mulheres: a figurinista Su Tonani denunciou ter sofrido assédio de José Mayer, o cantor sertanejo Victor foi acusado de agressão pela esposa, a mulher de Lasier Martins registrou queixa contra o Senador gaúcho também por agressão e um participante do BBB foi expulso após intervenção da Delegacia da Mulher. As situações, infelizmente, não surpreendem, já que se estima que uma em cada três mulheres no mundo já sofreram violência física ou sexual. O que talvez surpreenda seja a visibilidade que tais casos atingiram, tendo em vista a prática comum de desacreditar relatos de mulheres sobre violência e assédio e minimizar as situações.

Fato é que a grande repercussão de tais casos não ocorreu por acaso. Desde 2015, o feminismo tem sido pauta constante nas mídias, em grande parte por influência das redes sociais. Não podemos esquecer, por exemplo, do apelo da youtuber JoutJout às mulheres para que não tirassem o batom vermelho, dos relatos pessoais de silenciamento e assédio compartilhados nas hashtags #meuamigosecreto e #meuprimeiroassedio e da campanha pelo fim do assédio nas ruas Chega de Fiu Fiu.

É inegável, portanto, a importância das mídias e redes sociais na multiplicação do alcance de temas relevantes às mulheres. Por outro lado, porém, percebemos que boa parte do feminismo que se popularizou, tornando-se atrativo às mídias, é um feminismo de cunho mais individual e frequentemente branco e classe média-alta, que aborda prioritariamente pautas como a importância da mulher aceitar o seu corpo, não se submeter a padrões de beleza impossíveis ou ainda não aceitar imposições masculinas sobre como se vestir ou portar. Na esteira desses temas, chegou às conversas corriqueiras o conceito feminista de “empoderamento”, ou seja, o ato da mulher reconhecer o poder que tem e utilizá-lo, possibilitando com isso o rompimento de opressões.

Em meio ao debate feminista e à sua popularização, no entanto, o termo que queremos destacar é, não por acaso, o que dá nome a essa coluna: sororidade.

A sororidade, conforme já dito no artigo de estreia desse espaço, é “uma aliança firmada entre mulheres, baseada na empatia, irmandade e companheirismo”. Mas o que é importante destacar desse conceito é que essa aliança não se aplica somente às amigas ou às mulheres que gostamos; antes disso, a sororidade é compreender que todas as mulheres – mesmo as desconhecidas, as de quem discordamos ou as que vivenciam uma realidade muito diferente – enfrentam opressões de cunho machista, e a partir dessa compreensão, ver todas as mulheres como irmãs e que portanto merecem nosso cuidado mútuo[1].

Com isso, não queremos dizer que o feminismo “individual” não seja importante; antes pelo contrário! Cada mulher que se empodera, que se liberta, que se ama, é uma revolução a ser celebrada por todas. O que propomos, sim, é dar um passo adiante: precisamos não somente empoderar a nós mesmas, mas buscar estender a possibilidade de empoderamento a todas nossas irmãs, em especial àquelas para as quais as conseqüências do machismo, por se unirem a tantas outras opressões, se mostram mais graves[2]; em especial àquelas que por enfrentarem problemas tão urgentes no dia-a-dia tem menos contato com debates sobre o feminismo, e com isso talvez nunca cheguem a saber os impactos reais do machismo em suas vidas[3].

É a partir desse pensamento que se estruturam as ações da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos.

A Themis foi criada por advogadas feministas que, após participarem de uma conferência do CLADEM – Comitê Latino Americano para a Defesa dos Direitos das Mulheres em São Paulo no ano de 1992 se inspiraram em experiências internacionais de capacitação legal, tal como a experiência peruana do Centro Flora Tristán, e decidiram criar uma organização não governamental com agenda feminista na cidade de Porto Alegre.

Desde o início a instituição estruturou suas ações numa perspectiva de articulação entre gênero e direito. Uma das primeiras atividades foi um curso de 20h sobre direitos das mulheres como direitos humanos com a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Esse curso foi uma experiência inicial do Programa de Formação de Promotoras Legais Populares (PLPs) que hoje está na sua 16ª edição.

Em 1993, 13 anos antes da promulgação da Lei Maria da Penha, o programa de advocacia feminista cumpria um importante papel de atendimento jurídico às mulheres em situação de violência ou de violação de direitos humanos, pois tampouco havia sido criada a Defensoria Pública, para que pudesse ampliar o acesso a justiça das mulheres em situação de vulnerabilidade. Esse atendimento jurídico processual durou até o ano de 2011 e a partir de uma reflexão interna a Themis passou a advogar em casos estratégicos para proteger e alavancar direitos das mulheres em esfera nacional ou internacional.

Durante estes 24 anos de atuação, muitas advogadas, antropólogas, assistentes sociais, comunicadoras, promotoras legais populares, cientistas sociais e estudantes feministas já passaram pelo seu corpo técnico.  Também foram muitas as parcerias consolidadas com outras instituições e organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos das mulheres. Durante sua trajetória, o Programa de PLPs consolidou-se como uma política pública não estatal com uma metodologia própria de acesso à justiça[4].

Atualmente, a entidade estrutura suas ações a partir de três áreas:

  1. Fortalecimento do conhecimento das mulheres sobre seus direitos e o sistema de justiça.
  2. Diálogo com operadores/as do Direito sobre os mecanismos institucionais que preservam e reproduzem a discriminação contra mulheres.
  3. Advocacia em casos estratégicos para proteger e alavancar direitos das mulheres em esfera nacional ou internacional.

Dentro da primeira linha de atuação, além da continuidade do Programa de Formação de Promotoras Legais Populares, a metodologia foi utilizada em um curso de formação para trabalhadoras domésticas da região metropolitana de Porto Alegre, com a intenção de compartilhar conhecimentos a respeito de direitos das mulheres e direitos trabalhistas, gerando possibilidades de romper ciclos de violação de direitos que essa categoria vivencia diariamente. O curso foi concebido após um projeto de três anos em conjunto com 8 Sindicatos de Trabalhadoras Domésticas de todo o Brasil e com a FENATRAD – Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas, no qual se produziu vários encontros e cursos nacionais, materiais de divulgação das novas leis sobre trabalho doméstico, publicações e um filme de divulgação.

A atuação na Themis é uma experiência de contribuição à sociedade, mas sobretudo de formação feminista para a vida. O que percebemos nas trocas com mulheres que já passaram por aqui, seja com as integrantes do corpo técnico ou com as Promotoras Legais Populares, é que a educação em direitos segue sendo um projeto atual e necessário.

Primeiro, porque o Estado não está na base, na ponta, na comunidade. São as mulheres líderes comunitárias que nos ensinam como a lei (nem sempre) tem eficácia na prática. Ao mesmo tempo, há uma troca de saberes, pois é importante sempre questionar-se de que direito estamos falando e de que gênero também. Percebemos também que outras atuações se fazem igualmente necessárias e concomitantes: dialogar com as/os operadoras/es do direito, seja por meio da produção teórica, mas principalmente enquanto organização da sociedade civil sendo “ponte” entre a comunidade e o Estado e pautar a mídia com o discurso feminista que contrapõe o discurso hegemônico são ações políticas que constituem o objetivo do grupo.

Ao compartilhar, ainda que brevemente, um pouco da atuação da Themis, lançamos um convite à ação a todas as mulheres que já foram “fisgadas” pelo feminismo, para que possamos ultrapassar a tela do computador e, enxergando as particularidades de raça, classe, e tantas outras que se interseccionam, possamos compartilhar na prática com cada uma de nossas irmãs a possibilidade de combater o machismo por uma vida melhor para todas.

Lívia Zanatta Ribeiro é advogada formada em Ciências Jurídicas e Sociais na UFRGS. Na equipe da Themis, é assessora jurídica, atua nos projetos e na parte institucional. Está cursando um Curso Internacional sobre políticas públicas e justiça de gênero na CLACSO.

Michele Savicki é advogada trabalhista, formada em Ciências Jurídicas e Sociais na UFRGS. Militante feminista. É Assessora Jurídica da Themis, onde coordena os projetos relacionados a Trabalhadoras Domésticas, com foco no aplicativo Laudelina. Tem experiência em mediação de conflitos. Atualmente cursa Mestrado em Sociologia na UFRGS, realizando pesquisa sobre direitos das Trabalhadoras Domésticas.


[1] Já nos disse Valter Hugo Mãe que “todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros.”

[2] Não podemos esquecer que, se entre 2003 e 2013 o assassinato de mulheres brancas diminuiu 9,8%, no mesmo período o assassinato de mulheres negras aumentou 54,2%, conforme Mapa da Violência 2015.

[3] Conforme Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, estudo produzido pelo IPEA, enquanto uma mulher de renda superior a 8 salários mínimos dedica nos afazeres domésticos cerca de 4 horas semanais a mais que o homem, na faixa de renda de até um salário mínimo a diferença de tempo gasto com afazeres domésticos por homens e mulheres salta para cerca de 13 horas semanais.

[4]O livro “A Metodologia Themis de Acesso à Justiça” foi construído em parceria com o GEEMPA – Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia da Pesquisa e Ação e pode ser consultado no site da Themis: www.themis.org.br

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