A quem serve transformar a falsa acusação de estupro em crime hediondo?

Sugestão chegou ao Senado via portal e-Cidadania. No Brasil um estupro acontece a cada 11 minutos, mas só 10% são denunciados.

por Tory Oliveira, da Carta Capital 

 

Uma proposta de tornar uma falsa acusação de estupro crime hediondo e inafiançável chegou à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado. Com 21 mil assinaturas, a iniciativa partiu do Portal e-Cidadania e, por conta do volume de apoiadores, foi encaminhada para à comissão para análise como Sugestão Legislativa 7/2017.

O autor da proposta, Rafael Zucco, justifica o pedido afirmando que leu na imprensa que “80% das denúncias de estupro são falsas”. Ele cita genericamente a “vingança da mulher contra o homem, alienação parental e conseguir mais bens no divórcio” como os principais motivos que levariam uma mulher a inventar uma denúncia de violência sexual.

“A reflexão que faço é: a quem interessa transformar a falsa denúncia de estupro em crime hediondo? Qual o seu objetivo, considerando que vivemos em um país com altíssimos índices de violência sexual, um crime altamente subnotificado?”, analisa Silvia Chakian, promotora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo.

O Código Penal já contempla e pune, no artigo 339, a denunciação caluniosa, isto é, iniciar processo de investigação criminal contra alguém imputando-lhe crime de que o sabe inocente. A pena prevista é de dois a oito anos de reclusão.

“A acusação falsa de qualquer crime é gravíssima. Mas a questão é por que especificar no caso de estupro? Fica claro que isso atende a uma casuística, são casos pontuais. Isso afronta todas as vigências da boa técnica legislativa, ainda mais quando falamos da lei penal, que deve sempre ser genérica”, explica.

O site Aos Fatos, dedicado a fazer checagem de dados e notícias, classificou a estatística citada de 80% de falsas denúncias como “insustentável”, devido à “ausência de estatísticas básicas para comprovar ou refutar qualquer informação categórica a respeito de falsas acusações de estupro”.

A estatística, cuja fonte não foi detalhada pelo proponente da ideia, é recorrente em sites e páginas anti-feministas e de matiz conservadora. A possível origem parece ser uma notícia do jornal Extra, publicada em 2012, em que é atribuída à uma psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio a informação de que, nas varas de família na cidade do Rio de Janeiro, 80% das denúncias são infundadas. No entanto, esse número circunscreve-se aos registros de abuso infantil em situações de alienação parental e briga pela guarda das crianças naquele município – e, portando, não pode ser extrapolado para a realidade brasileira.

Outro obstáculo para embasar tal afirmação é a ausência de dados oficiais.O estupro é um crime com grande subnotificação, isto é, muitas vítimas deixam de denunciar a violência sexual.

No Brasil, onde a cada um minuto 11 mulheres são estupradas, estima-se que apenas 10% dos casos cheguem até a delegacia, segundo informações da pesquisa Estupro no Brasil: uma radiografia, elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e divulgada em 2016.

Na visão de Chakian, a sugestão legislativa proposta é perigosa. Além disso, traz à tona a questão da desconfiança que se tem em relação à palavra da vítima de violência sexual, como se a mentira fosse mais frequente nesses casos, em comparação com outros crimes.

“Isso é fruto de um preconceito com relação às mulheres. É como se a palavra delas não fosse digna de crédito”, afirma, explicando que os casos de denúncias falsas devem ser investigados, mas, novamente, apontou que tratam-se de casos isolados.

Silêncio e isolamento

O estupro é uma violência complexa, íntima, humilhante e peculiar, que viceja no silêncio: nove em cada dez mulheres vítimas de violência sexual acaba por não levar o caso até a polícia. A subnotificação é elevada no mundo todo.

O silenciamento é incrementado pelo medo de não acreditarem em seu relato, pelo estigma, o isolamento social e a vergonha de expor a privacidade. Outro complicador é que muitos estupros são praticados por pessoas do convívio da vítima, como cônjuges e exs, pais e padrastos. Amigos ou conhecidos respondem por 15% dos casos.

“Muitas acreditam que são culpadas também, que se colocaram naquela situação. Outras nem entendem o acontecido como um crime. Também sofrem com a falta de compreensão no próprio círculo de convivência e familiar, vistas como causadoras de desagregação na família”, analisa Chakian, observando que as vítimas de violência sexual ocupam uma posição desvantajosa e são as mais estigmatizadas. “Depois que elas denunciam, sofrem mais violência institucional e preconceito do que outras”.

Além disso, a própria natureza do crime torna-o complexo do ponto de vista das provas e de sua comprovação. Em primeiro lugar, nem sempre há prova pericial, uma vez que é possível que não haja vestígios da violência. Assim, o depoimento da vítima e sua palavra ganha relevância nesses processos.

“Quando você cria uma lei casuística, há o perigo de desestimular as denúncias. As vítimas tendem a suportar muito tempo caladas, não pode haver uma lei que desestimule a denúncia”, critica.

Apesar da ausência de estudos mais consistentes, a pesquisa False Allegations of Sexual Assault: An Analysis of Ten Years of Reported Cases estima que o índice de denúncias falsas de estupro fique entre 2 e 10% – resultado parecido com o observado em outros crimes.

Em outro levantamento, realizado no Reino Unido e encomendado pelo Crown Prosecution Service há quatro anos, concluiu-se que, em 17 meses de monitoramento entre 2011 e 2012, 35 processos de falsas denúncias de violência sexual foram levados a frente. No mesmo período, registrou-se 5,6 mil casos de estupro.

Para a justiça inglesa, o estudo embasa que a polícia não deve adotar uma postura “cautelosa” instigada pela “preocupação compreensível de que algumas alegações são falsas”.

Para Chakian, o esforço institucional deveria ser para incentivar que mais mulheres e vítimas consigam denunciar seus agressores. Ela também observa que o quadro parece estar mudando.

“Houve um tempo não tão distante em que as mulheres eram estupradas dentro de casa e não tinham onde denunciar, sequer sabiam que eram vítimas. Hoje as mulheres estão menos tolerantes, acionando o sistema para buscar o seu direito de denunciar uma violência. Isso é fruto de uma maior conscientização e amadurecimento da sociedade”.

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