Imagem: Zine Bloco das Pretas
Quando eu tinha entre 3/4 anos de idade eu me apaixonei pela primeira vez. Ivan era branco, tinha o cabelo liso cortado igual o de um indiozinho e tinha orelha de abano. Eu gostava de Ivan e Ivan também gostava de brincar comigo, embora eu percebesse que Ivan me tratava diferente na frente dos outros coleguinhas, às vezes fingia que não gostava mais de mim, ou não brincava mais comigo, eu relevava porque eu gostava de Ivan e achava que Ivan gostava de mim.
por Laura Elisa no Negra Solidão
Um dia voltei pra casa chorando e contei pra minha mãe que Ivan tinha me chamado de “sua preta!” e não queria mais brincar comigo. Minha mãe mandou eu responder pra Ivan que eu era “marrom bombom”, música que fazia sucesso na época. Então foi isso que eu fiz, voltei o outro dia pra escola e disse pra Ivan que eu era “marrom bombom” e que isso era uma coisa boa, lembro que isso me ajudou a me sentir melhor com a situação, mas isso nunca apagaria o fato que minha primeira paixão de criança me rejeitou pelo mesmo motivo que até hoje sistematicamente me rejeitam.
Não me lembro de muita coisa além disso dessa história, não sei até que ponto é possível se ter lembranças dos 3 anos de idade, mas eu me lembro especialmente desse episódio, nunca esqueci, nunca vou me esquecer de Ivan, de suas orelhas de abano e dessa marca em minha autoestima e na minha inexistente vida amorosa.
Falo inexistente vida amorosa porque considero que nunca realmente fui amada, desde a minha desventura no jardim da infância até hoje nada mudou. Em todo tipo de relacionamento amoroso que tentei empreender sempre estive sozinha, me apaixonava sozinha, amava sozinha e desencanava sozinha. Por isso tomei a decisão de aceitar a solidão, ou de aprender a conviver com ela, embora ela seja aterradora, ela cause dor, ela me ensinou coisas que só ela poderia ter me ensinado.
Acredito que não exista um dia na minha vida em que eu não me sinta rejeitada de alguma forma. Costumo dizer que alcancei a cota de rejeição de uma vida e por isso não sou capaz de construir possibilidades para ser novamente rejeitada, não corro atrás de relacionamentos igual já corri, não me desespero igual já me desesperei na adolescência, não existe tempo perdido, existe uma vida, e ela acontece enquanto fazemos as coisas, não depois. Daí eu entendi que a minha solidão nunca foi uma opção, conviverei com a minha solidão enquanto eu estiver viva. Poucas pessoas durante a vida realmente conhecerão o sentido da palavra solidão e o viverão até as últimas consequências.Fui durante a adolescência, infância e vida adulta minha melhor amiga, ninguém nunca se consolou como eu, sempre existirão as coisas sobre mim que nunca contei pra ninguém, sempre confiei e confiarei em mim porque eu, como ninguém, sempre estive aqui por mim. A sensação de gratidão é plena quando você realmente sente e consegue entender que não ama nada no mundo como ama a si mesma. Consegui transformar em real o clichê do autoamor, só minha solidão foi capaz de me dar isso e de me libertar da dependência emocional, da insegurança patológica e da manipulação dos homens.
Hoje, quando eu leio sobre solidão da mulher negra (que muito se assemelha à solidão de mulheres gordas, trans, com deficiência), eu entendo que às vezes se faz uma abordagem incompleta, a solidão da mulher negra não se resume a sermos destaque nas estatísticas de celibato definitivo. Eu sinto a solidão da mulher negra quando me pego consolando amigas brancas quanto a vivências afetivas que eu nunca tive, eu sinto a solidão da mulher negra quando todas as mulheres negras ao meu redor, ou estão sozinhas, ou em relacionamentos abusivos. Entendi que a solidão só é completa quando está atrelada a opressões estruturais, nos sentimos sozinhas em todo tipo de relação porque seremos ainda estigmatizadas em todo tipo de relação, a mãe preta, ama de leite, que provém a todos, que seca pra alimentar os outros enquanto seus filhos morrem de fome. A mulher negra segura a barra da mulher branca, segura a barra do homem negro, e nossa barra seguramos sozinhas. É nós por nós, ou melhor, nós por todos e ninguém por nós. Somos tratadas como a fortaleza de todos, somos procuradas pelas demandas emotivas de todos, mas não temos onde descarregar as nossas próprias demandas. Nós não alcançamos ainda o status de seres subjetivos, não somos vistas como pessoas que sofrem, sofrem sim, nós sofremos, nós sentimos dor como vocês, nós sentimos.
Porque a solidão não é apenas o estar só, a solidão é quando o mundo todo te dedica a todo momento desamor. Sempre que falo disso me lembro da Stephanie Ribeiro em uma mesa que aconteceu na UFMG ano passado, emocionada, dizendo que a gente deveria sorrir pra cada mulher negra que encontrasse na rua, no ônibus, limpando o chão do shopping ou da nossa universidade. Me lembro da emoção que senti naquele momento, e que sinto toda vez que sorrio a uma mulher negra desconhecida. A emoção de, por um milésimo de segundo, abandonar a própria solidão e encontrar-se com outra.