Já faz um tempo que o movimento negro vem colocando na pauta a discussão sobre o genocídio da juventude negra, criminalização da pobreza e a política de encarceramento em massa promovida em nosso país. Debate duro, difícil, mas que é preciso ser encarado, pois é a realidade de milhares de pessoas no Brasil, incluindo mulheres, sejam as mães daqueles que foram assassinados ou as jovens negras que sofrem com abortos ilegais e inseguros.
por Luka
Os mais recentes índices de violência demonstram o perfil racial dos assassinatos no país. O número de mortes de jovens negros, entre 15 e 24 anos, é 139% maior do que de brancos. Segundo o Mapa da Violência 2012, entre 2001 e 2010 o número de vítimas brancas, de 15 a 24 anos, caiu 27,5% (de 18.852 para 13.668), enquanto que de vítimas negras aumentou 23,4% (de 26.952 para 33.264). (ROCHA, Raiza. Ato denuncia o extermínio da população negra em São Paulo)
Porém não é apenas através do recrudescimento da violência policial que vemos a população negra ser exterminada nestas últimas décadas. Importante lembrar da política de esterilização promovida nas periferias, impondo as mulheres uma condição que não foi escolhida por elas e baseada no modelo americano de combate a pobreza que inclui encarceramento em massa, esterilização das mulheres negras e criminalização da pobreza. Aqui talvez o maior arauto deste modelo de extermínio da população pobre e negra seja o governador do Rio de Janeiro: Sérgio Cabral.
A esterilização ocupou lugar privilegiado durante anos na agenda política das mulheres negras que produziram campanhas contra a esterilização de mulheres em função dos altos índices que esse fenômeno adquiriu no Brasil, fundamentalmente entre mulheres de baixa renda (a maioria das mulheres que são esterilizadas o fazem porque não encontram no sistema de saúde a oferta e diversidade dos métodos contraceptivos reversíveis que lhes permitiriam não ter de fazer a opção radical de não poder mais ter filhos). Esse tema foi, também, objeto de proposições legislativas, numa parceria entre parlamentares e ativistas feministas que culminou no projeto de Lei nº 209/91, que regulamentou o uso da esterilização. (CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento)
Estas nuances da política de genocídio da população negra que vemos em nosso país acabam escondidas, invisibilizadas justamente pelo fato de que quando nós mulheres negras nos organizamos para debater a categoria gênero junto ao movimento negro ou a categoria raça junto ao movimento feminista acabamos tolhidas como divisoras dos movimentos, quando na verdade é o contrário, é a tentativa de demonstrar o quão hoje a sociedade machista e racista persegue, esteriliza e mata um povo que tem cor, gênero, sexualidade e tantas outras categorias.
Não é de 2012 que vemos um recrudescimento da violência policial em nosso país e mais precisamento no estado de São Paulo, só lembrar dos crimes de maio e todo o debate sobre desmilitarização da polícia em nosso país. Além obviamente do debate sobre direitos sexuais e reprodutivos, pois as mulheres negras tem mais chances de morrer de abortos ilegais e inseguros e ao recorrer aos postos de saúde terem atendimento negado. Pois, somos nós quem mais precisamos do serviço público de saúde, que hoje está entregue a privatização e muitas vezes é gerido por organizações sociais ligadas a igrejas diversas. Somos colocadas para morrer de hemorragia, julgadas e condenadas a morte por médicos e enfermeiras, assim como os jovens negros são julgados e condenados a morte pela Polícia Militar em todo país.
Estamos em um estado no qual a cada dia são mortas 2 pessoas pela Polícia Militar de São Paulo e nada é apurado. Enquanto isso, grande parte das candidaturas a prefeitura falam em recrudescer a violência na periferia com um sorriso na cara, como se fosse resolver o problema da violência em nossa cidade assim, quando na verdade só opera um programa racista e segregatório. E, nas pontas, lá estão as mulheres, perdendo seus filhos, sendo humilhadas nos presídios e fundações casas com revistas vexatórias, sabendo que seus filhos ou filhas sofrem torturas e afins. Mas isso é ainda mais calado, para que relevar o que sofrem estas mulheres, né?
O problema é que não nos colocamos a pensar que política é essa, até porque por muitos anos essa ideologia entra cotidianamente em nossas vidas através dos programas sensacionalistas do mundo cão, como o Aqui e Agora, Programa do Ratinho, Datena e outros, ou das notícias que não passam de boletins de ocorrência escritos com outras palavras. Fomos sendo hipnotizados por uma falsa idéia de que era necessária uma política de segurança, que, para ser mais eficiente, poderia violar todos os nossos direitos, transferindo para o braço armado do Estado todos os desígnios das nossas vidas. A cada tiro no cidadão, um tiro em nossa já muito baleada Constituição.
O atual governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, quando assumiu seu primeiro mandato em 2001 reafirmou a mentalidade intervencionista, repressiva e autoritária baseada na doutrina de segurança pública dos Estados Unidos de guerra preventiva e permanente contra o terror. A política de “tolerância zero” é de guerra contra o inimigo interno, já que não estamos em guerra com outro país. Pra quem acha um exagero, já que se nomeia o atual regime que vivemos de democracia, até as estatísticas oficiais apontam que o inimigo interno é a população pobre e negra. (MANOEL, Givanildo. Mentiras, verdades e silêncio sobre a política de insegurança pública)
Se na periferia ouvimos histórias e mais histórias de mães e irmãs sobre prisões inexplicáveis, sobre desrespeito aos direitos humanos, a situação real é sempre mais difícil. O genocídio da juventude negra atinge na maioria jovens negros, mas são as mulheres negras que aqui ficam com a estigmatização, com a dor de não enterrarem seus filhos. Mas a violência, como eu disse, não nos atinge apenas quando a polícia mata um dos nossos de forma arrogante, mas também quando somos relegadas sozinhas para morrer nos hospitais. O algoz dos jovens negros é a polícia, o algoz das jovens negras é a privatização da saúde. Tudo isso servindo ao mesmo governo e a mesma ideologia racista, machista e capitalista.
Segundo matéria da Caros Amigos em dois meses morreram mais 200 pessoas na periferia de São Paulo e nas cidades satélites. Ilustração – Tributo as Mães de Maio e as mulheres de coragem do Brasil e de todo mundo” de Carlos Latuff, Maio/2011.
Basta vermos que há pouco tempo o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, empossou mais de 200 delegadxs e, pediu para recrudescer com a juventude. Isso pode ser visto em nossa periferia cada vez mais, até onde li já morreram mais de 200 pessoas nestes dois meses de “guerra ao terror” do tucanato. Mães, irmãs e filhas que perderam seus entes e muitas vezes nem sabem onde estão enterrados ou presos. E a saída ainda é matar, e se procurarem por aqueles desaparecidos durante os confrontos, a resposta é preconceito e humilhação. A culpa é da família e não de um estado que a tudo segrega e nega direitos básicos de cidadania. Coincidência com crimes da ditadura? Só pode.
O que se percebia era um trânsito entre uma ideologia da repressão política dos anos 70 (simbolizada na Escola Superior de Guerra, think tank da doutrina da ditadura militar) com a segurança pública do início do século XXI, principalmente quando os governos brasileiros eleitos em 1989, 1994 e 1998 inseriram o país na doutrina neoliberal que significou uma intensificação da concentração de renda. A lógica dos interrogatórios com requintes de tortura nas delegacias,a postura ostensivamente violenta dos agentes da PM nas ruas,a manipulação de provas, entre outras coisas,até mesmo a postura quase que institucional de justificar os atos violentos da polícia como reação à suposta resistência da vítima lembra estes períodos da repressão política. (Genocídio da Juventude Negra:Doutrina da ditadura e racismo continua firme e forte nas forças de segurança)
Estamos à margem da sociedade e para isso justifica nos retirarem a força de nossas casas, matarem nossos filhos e nos negarem acesso a saúde. Nos matam por nos odiarem, nos humilham por nos odiarem, fazem tudo por que odeiam o povo e o povo desse país é negro, mulher, LGBT e trabalhador.
Luka
Paraense radicada em São Paulo, jornalista, mãe, feminista e socialista. Graduada em Jornalismo pela PUC/SP, foi militante e coordenadora nacional da Executiva Nacional de Estudantes de Comunicação Social (ENECOS), acompanha mais ou menos a oposição dos jornalistas, faz parte do setorial de mulheres do PSOL e é coordenadora do cursinho Guerreira Maria Filipa, em Guaianases, da UNEafro-Brasil.
Fonte: Blogueiras Feministas