Extermínio da população da periferia, uma ação política pensada nos anos 1980

 

Reprodução do capítulo “Do preço da paz” do documento da Escola Superior de Guerra de 1988

 por Dennis Oliveira

Já mencionei em artigos anteriores o documento da Escola Superior de Guerra intitulado “Estrutura para o poder nacional para o ano 2001 – 1990/2000, a década vital para um Brasil moderno e democrático” produzido pelo think tank da extrema direita militar brasileira com vistas as eleições presidenciais de 1989 no Brasil.  O documento cita frequentemente os “Objetivos Nacionais Permanentes” – desenvolvimento e paz social – e defende a hipótese que o desenvolvimento da nação tem como custo a manutenção de estruturas de segurança para garantir a defesa destes objetivos a ameaças à estabilidade nacional.

Uma das ameaças que é a tônica deste capítulo é a “segurança pública”. Diz o documento “No âmbito interno, como forte ameaça futura ao objetivo nacional permanente Paz Social e à prórpia paz, há uma situação concreta que vem afetando e, até, poderá atentar contra a Segurança Pública de modo dominantecom reflexos e mesmo atingimento do campo da Segurança, gerndo um estado de insegurança generalizada tal que os poderes constituídos, nos termos da Constituição, venham a pedir o concurso das Forças Armadas para restaurar a lei e a ordem” (p. 283).

Mais adiante, o documento afirma que há dois problemas interligados nesta questão: os cinturões de pobreza e miséria e os “menores” (sic) abandonados.

A respeito dos cinturões de miséria, o documento afirma:

“Na medida em que Estado e sociedade não conseguem oferecer trabalho, bem estar e segurança, essas estruturas clandestinas de virtual poder paralelo vêm criando condições de melhoria para cada coletividade local, no micro-espaço onde a estrutura atual, a que lhe enseja junto à população moradora local, se não uma atitude participação ou mesmo de cumplicidade, pelo menos enseja um ambiente de simpatia e, até de solidariedade quando no confronto com forças da lei.” (p. 284)

Mais adiante, conclui a respeito deste ponto:

“O exemplo atual da Colômbia (1989) aponta um quadro possível de ocorrer, com presença da subversãocontestação aos valores democráticos no contexto deste problema o que poderá levar um dos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário a tomar a iniciativa quanto ao emprego das Forças Armadas para restaurar (ação posterior) ou garantir (ação preventiva) a Lei e a Ordem ameaçada” (p. 284, grifos meus)

A referência a Colômbia é ilustrativo pois este país sul-americano praticamente se militarizou, sob comando dos Estados Unidos, fazendo refém das Forças Armadas toda a sociedade civil. Chamo a atenção aqui o uso do termo “subversão” e “contestação” aliado a “criminalidade”, uma analogia típica dos tempos da ditadura militar. Também chama a atenção a idéia de que as Forças Armadas poderiam desempenhar um papel de “segurança preventiva”.

Quanto ao problema dos “menores abandonados”, o documento afirma:

“È difícil avaliar quantos são, as estimativas são desde muitos milhares até milhões. Se, apenas para conjecturar, supusermos que, hoje, este número seja de 200 mil menores (…) temos que no início do próximo século haverá um contigente de marginais, malfeitores e mesmo de assassinos de efetivo semelhante ao atual do Exército. (…) Aí então, quando às Polícias Militares faltarem condições para enfrentar tal situação, o que é razoável imaginar que ocorrerá fatalmente, os poderes constituídos Executivo, Legislativo e Judiciário poderão pedir o concurso das Forças Armadas para que se incumbam do duro encargo de enfrentar esta horda de bandidos, neutralizá-los , mesmo destruí-los, para ser mantida a lei e a ordem.” (p. 285, grifos meus)

O Comando Sul das Forças Armadas dos EUA publicam uma revista chamada “Diálogo” (em português) que circula nos meios militares. Nesta publicação, há a clara disseminação da idéia de que o papel das Forças Armadas dos países da América Latina é o combate ao narcotráfico e ao crime organizado, citando quase sempre os exemplos (positivos para eles) do papel desempenhado pelos militares na Colômbia e México. Evidente que a revista defende que estas ações militares devam ocorrer com o know how dos EUA. Assim, além de uma ação repressiva, esta política é uma forma disfarçada de intervenção estadunidense nos países do continente.

A campanha desenvolvida por organizações do movimento anti-racista contra o Genocídio da População Negra (clique aqui para ver), em especial nas periferias das grandes cidades é de grande importância para trazer este problema para o centro da agenda política. Embora este documento da ESG seja de mais de 20 anos atrás, ele demonstra existir no país um pensamento de militarizar a questão da segurança e, mais ainda, que esta ação é necessária para o “desenvolvimento do país”.  Um tema importante tendo em vista que um dos pilares do projeto desenvolvimentista do atual governo tem como um dos pilares os grandes eventos internacionais que se avizinham (Copa do Mundo e Jogos Olímpicos) e as intervenções urbanas decorrentes disto. Os conflitos com a periferia tendem a se intensificar e idéias como esta podem proliferar.

 

Fonte: Fórum

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