Faça a Coisa Certa: a obra prima antirracista

Veja esses anéis, eles atingem diretamente na alma do homem. A mão direita. A mão do AMOR! ESTÁTICA! Uma mão está sempre lutando com a outra. Mão esquerda, ÓDIO, está batendo tanto que parece que a mão direita foi vencida. Espere aí. Pare a pressão! O amor está voltando, sim, é o amor. O amor venceu. Mão direita ÓDIO foi nocauteada pelo AMOR. Irmão, Mookie, se eu te amo, eu te amo, mas se eu te odeio…

(Radio Raheem – personagem de Bill Nunn)

A vitória do amor é o sonho legado por Martin Luther King Jr. Seu discurso uniu a comunidade afro-americana como nunca antes. É dele o mérito de reunir 300 mil pessoas em um protesto pacífico contra a segregação da população negra e em defesa dos direitos civis, na cidade de Washington, onde ele proclamou seu mais famoso discurso, “Eu tenho um sonho”. O Dr. King escancarou ao povo o que os poderosos buscavam esconder: a pobreza e a miséria são mecanismos racistas de manutenção do poder da branquitude. 

O Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.”

(Trecho do discurso “Eu tenho um sonho”)

King abalou profundamente as estruturas, construiu pontes e dialogou com os detentores do poder. Foi preso incontáveis vezes por protestar. Provocou mudanças fundamentais na legislação estadunidense, como a criação da Lei dos Direitos Civis de 1964. Não pôde usufruir dessas mudanças. Sua liderança se expandia perigosamente e a ameaça às estruturas de poder que ele representava era real. Foi assassinado aos 39 anos em abril de 1968 por um homem branco, que, dizem, obedeceu a ordens Estatais. A verdade provavelmente jamais será conhecida.

Na luta antirracista americana o líder e ativista Malcolm X ocupava outro espaço, mas convergindo com o ideal de mudança de King Jr. A história já havia provado para Malcolm X que não havia solução para a estrutura supremacista branca dominante americana. A solução por muito tempo defendida por ele era a da unificação do povo negro e exercício de poder próprio e autônomo. Malcolm X empoderou a comunidade negra, pregou identidade, conectou o povo com suas raízes e ancestralidade. Como Dr. King, descobriu e revelou que a luta antirracista vai muito além do homem branco como indivíduo, mas deve contrapor, essencialmente, a estrutura de exploração por ele construída. Em sendo a estrutura exploratória e violenta, a comunidade, o povo negro, necessita defender-se. A defesa contra a violência só pode ser exercida com violência. 

Eu não chamo de violência quando é em autodefesa, eu chamo de inteligência.”  (Malcolm X)

A figura de Malcolm X e a imponência de seu discurso amedrontava o sistema. Foi assassinado aos 39 anos, em maio de 1965.

O discurso pacifista de Martin Luther King Jr. não foi suficiente para impedir seu assassinato. Tampouco a autodefesa de Malcolm X evitou sua morte. A vitória, de fato, foi do sistema, que conseguiu que o povo afro-americano permanecesse longe dos espaços de poder, retirou-lhes seus líderes. Os grandes avanços proporcionados pelos dois ativistas, claro, não foram em vão. A capacidade de unir o povo afro-americano e suas conquistas não têm precedentes, e eis o motivo do temor que acarretou seus assassinatos. Mas é inegável que a cada morte negra evitável, cada barriga negra que ronca de fome, cada pessoa negra encarcerada, cada criança negra que interrompe os estudos, e a cada comunidade marginalizada, o sistema vence.

Faça a coisa certa não é profético. Spike Lee, que, aos 32 anos, produziu, dirigiu, roteirizou e atuou seu filme, denuncia o persistente triunfo do sistema enquanto a luta e identidade negra continua sendo banalizada, no longa que foi considerado pela Cinefilia Brasileira¹ um dos melhores filmes da década de 80, e é, sem medo de errar, um dos melhores filmes já realizados.

A complexidade da obra-prima de Spike Lee não se reduz a sinopses. A profundidade dos personagens que ele cria e a revolução que ele convoca não se traduz em poucas palavras. A tarefa de introduzir o universo da comunidade negra do Brooklyn por ele retratada é atribuída ao protagonista Mookie (interpretado pelo próprio diretor), um entregador de pizzas que trabalha na Sal’s Famous Pizzeria, estabelecimento do ítalo-americano Salvatore “Sal” (Danny Aiello) e seus filhos Pino (John Turturro) e Vito (Richard Edson). A pizzaria é só um dos negócios de propriedade imigrante que ocupa o espaço da comunidade negra do Brooklyn. O tempo do filme é limitado por Lee num único dia, o dia mais quente do verão de 1988, durante o qual vamos acompanhando Mookie desde o seu despertar até o encerramento de seu dia de trabalho. 

Usando o calor extremo, o suor constante e a fotografia amarelada e quente como forma de exacerbar e refletir o calor das emoções e conflitos, a harmonia que aparentava reinar naquela comunidade é quebrada quando Buggin Out (Giancarlo Esposito em tempos anteriores à Breaking Bad), exigindo representatividade, resolve estimular um boicote à pizzaria de Sal até que ele coloque nas paredes de seu estabelecimento, no seu “Hall of Fame” ocupado por celebridades ítalo-americanas tais como Sophia Loren e Robert De Niro, fotos de figuras negras representando a comunidade que sustenta aquele negócio.

O icônico início do longa, porém, não é esse. Não é convencional, e bem expõe sua proposta: numa impressão estilística fortíssima, genialidade exclusiva de Lee, e sua dinâmica e marcada direção, enquanto brinca com sombras e luzes principalmente vermelha e azul, assistimos Rosie Perez, intérprete da personagem Tina, incansavelmente dançando ao som dos mais de quatro minutos da música Fight the Power, do revolucionário grupo de hip-hop Public Enemy. A alegoria dessa introdução à luta contra o poder dos opressores é muito clara, e Lee permite que a letra da música (e a força da atriz) faça suas vezes.

O responsável por acordar Mookie e os demais moradores da vizinhança nesse caloroso dia é o programa de rádio de Love Daddy (Samuel L. Jackson, creditado como Sam Jackson), que logo revela o calor e recorda aos ouvintes: acordem! Através das andanças de Mookie, somos apresentados não só aos indivíduos que pertencem àquela comunidade, mas principalmente, à coletividade e à dinâmica de sua união. Notoriamente muito estimado por todos, o protagonista circula pelas ruas no seu percurso e durante o trabalho, enquanto faz entregas.  

Todos os núcleos transitados por Mookie são de suma importância ao filme e à comunidade. Ele acorda com sua irmã Jade (Joie Lee), com quem divide a moradia. Passa por Smiley (Roger Guenveur Smith), um personagem com dificuldades na fala que passa o dia vendendo fotos de Martin Luther King e Malcolm X juntos. O tempo todo, através de Smiley, somos convidados a rememorar os líderes: “Eles estão mortos, mas nós ainda temos que lutar”, diz enquanto marca um X nas figuras mortas contidas nas fotos. Em continuidade, cumprimenta Mother Sister (Ruby Dee), que o adverte para que não trabalhe muito por conta do calor, e Da Mayor (Ossie Davis) com sua lata de cerveja encoberta por um papel de pão, os anciãos da comunidade. Cruza com Radio Raheem (Bill Nunn). Descobrimos que Tina, a dançarina combatente da introdução, é latina e mantém um relacionamento com Mookie possuindo com ele um filho, Hector (Travell Lee Toulson). Há, ainda, o núcleo da parede vermelha, três figuras masculinas negras que passam o dia observando o movimento da vizinhança porque para eles não há trabalho, e que debatem, entre algumas boas risadas, sobre o dia em que as calotas polares derreterão e inundarão continentes, com Lee sutilmente criticando o negacionismo. Há porto-riquenhos, há coreanos, há crianças na rua, há adolescentes que brincam com hidrantes para se refrescar no calor.

Dividindo o protagonismo com Mookie, Sal, seus filhos e a famosa pizzaria, compõem o ponto de chegada e de partida dos personagens. Ele se orgulha do negócio que construiu com suas próprias mãos e que pertencerá a seus filhos. Mostra-se feliz em ver as crianças daquela comunidade crescerem com sua pizza. Diz considerar Mookie como um filho. Tenta encontrar um equilíbrio na relação entre seus herdeiros, Pino, abertamente racista e supremacista branco, e Vito, que busca integrar-se à comunidade negra. Mas não hesita em recorrer a um taco de baseball para violentar Buggin Out quando este reivindica fotos de irmãos negros na parede.

A saga de Buggin Out é provocar o boicote da pizzaria de Sal. A de Mookie é ser pago no final do dia. A saga de Da Mayor é conseguir beber uma cerveja aqui e acolá ao longo do dia para esconder um passado sofrido. A de Smiley é vender fotos de Malcolm X e Martin Luther King Jr. A questão é que cada um dos personagens, essa rica pluralidade de características e personalidades criadas por Lee que encontram desafios individuais e coletivos, representa a luta da comunidade como um todo, que continua tentando sobreviver, continua precisando acordar (no sentido mais profundo da palavra) para cada dia enquanto assiste a exploração de seu povo e a ocupação de seu espaço. Ainda, essa comunidade específica é símbolo do todo que é o povo afro-americano.

O mote da obra é a estática que provém do choque, o equilíbrio. O personagem de Radio Raheem parece ser construído como ponto de aderência entre a suposta dicotomia existente entre amor e ódio, entre a filosofia de Martin Luther King e o ideal de Malcolm X. Suas poucas palavras (que destacamos no início do texto) findam por definir o propósito mais amplo do diretor, que brinca com essa aparente dualidade o tempo todo. Como permanecer em equilíbrio quando dois dos maiores líderes do movimento negro afro-americano foram brutalmente assassinados sob a intenção de calar o povo negro? O que justifica a pacificidade quando, a cada dia, se assiste o assassinato de um irmão negro pelas mãos da violência policial? De que forma reagir quando tanto o discurso pacifista como o discurso reativo são calados da mesma forma?

Muito já se polemizou a respeito da composição dos personagens, suas motivações e reações. À época de seu lançamento, o filme de Spike Lee foi ignorado pelo Oscar (que preferiu dar voz à Conduzindo Miss Daisy), e esnobado no Festival de Cannes (que se redimiu tornando Lee presidente do júri em 2021). O incômodo que ele gerou, e parece ainda gerar, explicita as raízes racistas mais profundas da branquidade. Há quem condenará os personagens e suas ações (ou a falta delas) e validará atitudes racistas mostradas no longa. Há quem enxergará estereótipos e exagero nas composições, numa banalização brutal da cultura afro-americana. Há, ainda, quem não se identificará com qualquer um dos personagens negros e não sentirá empatia por qualquer um deles. A ferida aberta por Spike Lee é profunda na consciência de muitos. Tais julgamentos são os mesmos que tornam a destruição de alguns vidros e prateleiras mais importante do que a vida negra que se esvai. Dizem, de fato, mais sobre seus julgadores do que da construção do filme em si.

A composição do personagem de Radio Raheem é fundamental para o propósito do filme. Sua representação externa não deixa dúvidas: os anéis de LOVE, na mão direita, e HATE, na mão esquerda, dão conta da constante luta do filme. De poucas palavras e voz contida, o único “crime” do personagem é querer reforçar sua identidade através de sua música preferida: Fight the Power, do grupo Public Enemy, claro. É só isso. Ele circula pela comunidade com um microsystem tão potente quanto maneiro (e notadamente uma conquista que ele carrega orgulhosamente) ouvindo repetidamente a mesma música.

Há uma cena muito significativa em que o personagem cruza com um grupo de porto-riquenhos, que ouvem música que lhes traz identidade. Numa disputa de músicas, os latinos, que sofrem semelhante marginalização naquele país, cedem. A luta contra o poder também é deles, e Radio Raheem vem lembrá-los disso. Ele transita como essa consciência o tempo todo.

Como consciência, as falas de Radio Raheem sempre vem acompanhadas de amor. Ele, que carrega um colar com pingente com o formato do continente africano (tal como vários personagens) expressa seu amor à comunidade o tempo todo. Até cruzar o caminho de Sal. A entrada de Raheem na pizzaria com seu som, com sua identidade, imediatamente torna Sal violento. Enquanto o personagem de Bill Nunn não se altera e pede dois pedaços de pizza, Sal grita e exige que Raheem desligue sua música. Ele cede e continua sendo hostilizado. Mais tarde, ao narrar o episódio, Radio Raheem relembrará: “Ele não disse nem ao menos ‘por favor”’. Sua fala reforça os privilégios da branquitude, e como o sistema de poder reafirma isso em atitudes corriqueiras.

Sal, outro personagem de enorme complexidade, em que pese reconheça se sustentar às custas da população negra que consome sua pizza, e muito embora mostre nutrir algum carinho e sincero respeito pela comunidade e pelas pessoas que ele viu crescer, nega-lhes representatividade, banaliza a identidade e a cultura negra. A comunidade negra lhe serve como consumidora e geradora dos lucros e até essa relação exploratória gera, humanamente, afetos. Entretanto, Sal continua sendo branco e não renunciará a seus privilégios e ideal de supremacia, ainda que guarde afetos. Em sua pizzaria, às pessoas negras permite somente o consumo de pizza, nada de representatividade para elas. Nada de música negra ou personalidades negras na parede, nada de ocupação de espaços.

A luta de Radio Raheem pela preservação de sua identidade o fará endossar o boicote organizado de Buggin Out, que é violentamente hostilizado por Sal ao exigir personalidades negras no “Hall da Fama”. O personagem de Giancarlo Esposito é outro exemplar representante da cultura negra que carinhosamente é enaltecida pelo diretor em cada construção, em cada detalhe de figurino e direção de arte.

O colar que leva a forma do continente africano também circunda o pescoço de Buggin Out. Sua roupa é repleta de detalhes e estampas africanas. E mais importante: seu tênis carrega o legado de uma importantíssima figura afro-americana: o jogador de basquete Michael Jordan, dos maiores de todos os tempos. O modelo calçado é o Air Jordan, da marca Nike, da qual o diretor Spike Lee é antigo colaborador como designer. A reação do personagem quando um ciclista (branco e vestido com uma camisa de Larry Bird, jogador também branco da NBA) suja seu Jordan transcende a indignação: a mancha do tênis é a tentativa de apagamento que enfrenta diariamente a cultura negra. A luta de Buggin Out é o reforço de sua identidade, tal como Radio Raheem. É uma delícia perceber o carinho de Spike Lee nos detalhes que essa obra proporciona.

Dito isso, a revolução trazida por Spike Lee também transcendeu o cinema, e reforçou a voz de um movimento importante da cultura negra que se estabelecia no início da década de 90. Na esfera musical, da moda e do cinema, havia um resgate da filosofia de Malcolm X como forma de empoderamento que refletiu, inclusive, na cultura brasileira, inspirando artistas como Mano Brown e fortalecendo o rap em nosso país.

Spike Lee usa muitos mecanismos de empoderamento. A necessidade de dizer nomes imprescindíveis da cultura negra e que ecoaram/ecoam para a cultura mundial, como se faz na voz do locutor interpretado por Samuel L. Jackson, rememora para nós e para os personagens que não só que os maiores representantes da música e do esporte são negros, como também que a origem da cultura americana é negra.

Mookie faz esse mesmo exercício com Pino, personagem supremacista branco que não tem qualquer temor em mostrar-se racista. Questionado sobre seu jogador de basquete preferido, seu músico preferido, seu ator preferido, Pino se vê respondendo somente nomes de personalidades negras, como Magic Johnson, Prince e Eddie Murphy: “Eles são negros, mas não são realmente negros. Eles são mais que negros. É diferente.” Num diálogo riquíssimo, cabe a Mookie apontar que o cabelo de Pino é tão crespo quanto o dele, rememorando que a origem da humanidade é, de fato, africana.

A racional composição e fortalecimento de identidades emociona, também, ao notarmos, ao lado da pizzaria de Sal, um enorme e belíssimo mural, composto pela união dos estandartes dos Estados Unidos, de Porto Rico, da Jamaica, e da bandeira Pan-Africana ou da Libertação Negra.

Nota-se que a consciência racial e de luta contra o poder existe em todos os personagens. Há, porém, uma comunidade aparentemente adormecida, calada pela morte de seus líderes e pela vitória do sistema. O papel do boicote é recordar a retomada de consciência, fazer acordar a necessidade de reivindicar espaços e reforçar identidades.

Spike Lee conduz, com humor sagaz e extremamente inteligente, seu longa até pouco mais da metade entre o calor extremo, ânimos inflamados e limites barrados pelo ponto de aderência que tanto falamos aqui. Quando o sol se põe e a noite cai, a fotografia amarelada dá lugar a um azul calmo apaziguador, alívio aos personagens e ao espectador. O dia de trabalho foi vencido e terminou bem, Sal lucrou, Mookie irá receber seu salário. A harmonia logo dá lugar ao estopim e conclusão do filme, o soco no estômago final do espectador.

A mensagem de Spike Lee é muito clara: numa comunidade que mesmo oprimida e marginalizada encontra espaço para todos, no final do dia, na explosão de ânimos, quem perde para o sistema é o povo negro. Numa aparente dicotomia das filosofias de Dr. King e Malcolm X, os dois morrem. Num espaço onde aparentemente houve evolução de direitos civis e muitas conquistas em prol da comunidade negra, o negro não pode reivindicar sua identidade. Assim, quando Buggin Out, Radio Raheem e Smiley finalmente vão exigir representatividade no “Hall da Fama” da pizzaria, e o confronto ameaça privilégios brancos, o racista adormecido toma forma e a violência de Sal tem seu lugar.“Turn that JUNGLE MUSIC off.  We ain’t in Africa”.

Sal destrói o microsystem de Radio Raheem a pauladas de taco de baseball. Como o próprio diretor roteiriza, “Radio Raheem’s pride and joy is smashed to smithereens”. O choque não dito de todos é evidente, e a explosão não pode mais ser contida. O fio se rompe. A violência iniciada por Sal exige uma reação de Radio Raheem. O embate físico entre os dois atrai Pino, Vito, Buggin Out, muitos, e culmina com a chegada da polícia. A estrutura resolve como sempre resolveu: Radio Raheem é imobilizado pela polícia e asfixiado até a morte. Buggin Out é preso. Nada ocorre a Sal, Pino ou Vito.

Se a chocante desproporcionalidade da reação e violência policial contra a população negra refletida no assassinato de um personagem que prega a vitória do amor durante todo o longa não for o suficiente para mostrar a gritante necessidade de revolução estrutural, a latente urgência de reação, nada mais o será. A mensagem de Spike Lee não comporta outra interpretação. A reação acontece no longa, a população negra precisa se defender com inteligência. Direciona-se, então, sob a liderança silenciosa e chocada de Mookie, a violência/inteligência/autodefesa ao bem material, à pizzaria de Sal, que é destruída e incendiada pela comunidade. Da mesma forma que Radio Raheem vê destruída sua música, seu orgulho, Sal vê sua pizzaria ser levada abaixo. A diferença é que Sal continua vivendo e tem seguro que lhe ressarcirá os danos. Radio Raheem morreu por reivindicar representatividade e se recusar a negar sua identidade.

Aqui, não há dicotomia a ser estabelecida, não há e não deveria haver disputas: a destruição da pizzaria de Sal não é nada ante o assassinato de Radio Raheem. Inexiste paralelo entre o bem da vida e o bem material. A filosofia de Martin Luther King falhou, o amor não foi suficiente para que mudanças fossem estabelecidas, mas serviu como mote para a revolução, para o protesto, para a reivindicação que para ser ouvida precisa se autodefender. O oprimido é ouvido quando usa da mesma arma do opressor. Ainda assim, mais de 30 anos após a obra de Spike Lee, a história se repete. A resposta da estrutura política à tragédia é expressa nas manchetes de jornal mostradas no filme: “o prefeito não vai mais admitir danos às propriedades”. Não é profecia, é sintoma. Não à toa, o diretor finaliza seu filme com mais um dia se iniciando em que pese as manchas que permanecem nas ruas. A luta não acaba, não acabou e parece longe de acabar. O ponto de aderência é a chave. Mas ultrapassá-lo como meio de defesa pode ser necessário. Os discursos de Martin Luther King e Malcolm X sobem à tela para pontuar o fim do filme, deixando aberturas e feridas no coração do espectador que não podem ser fechadas. O espectador do início não é o espectador do final do filme, a transformação e a revolução já foi feita, a semente plantada por Spike Lee precisa render frutos. A tomada de consciência é uma constante.

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