A Fada Azul matou a cidadania no aniversário de Ulysses

Doutora em Ciência Política e professora titular da EBAPE/FGV

Por Sonia Fleury Do Canal Ibase

Com um modelo azul claro em estilo pastoril e penteado apropriado a uma jovem recatada do início do século passado, a ex Miss Paulínia e São Paulo, agora primeira dama, passou a exercer a função de embaixadora do Programa Criança Feliz. Nem seu ar angelical de fada madrinha, nem a promessa de dar muito amor às crianças pobres, no entanto, são capazes de esconder a bruxa que anda solta e encoberta nas reformas das políticas sociais.

Em primeiro lugar, temos a volta do primeiro-damismo como critério de acesso às mais altas posições na condução da política pública. Sua seleção para exercício do cargo certamente não se deu por méritos próprios e adequação do perfil profissional ao exercício da função, cuja inexistência de um currículo vitae evidencia, mas porque é a esposa do presidente. Haverá algo mais lógico que ter uma moça linda, boa mãe, esposa dedicada e amorosa para cuidar dos pobres? Lembram-se da Roseane Collor na LBA? Mesmo processo seletivo. Até mesmo a competente antropóloga Ruth Cardoso caiu na ilusão de que exercia o cargo de direção no Programa Comunidade Solidária por mérito próprio, desde ali construindo uma trincheira contra a ação estatal na provisão de direitos assistenciais, como está na Constituição de 1988, assegurada ampla participação da sociedade civil no desenho e controle desta política social.

Desde que a Constituição Federal de 1988 instituiu a assistência social como direito de cidadania tem sido grande a luta para eliminar estes resquícios do modelo assistencial baseado na caridade e amor e fundar um modelo baseado em direitos e deveres. Fruto desta trajetória é a enorme e capilar institucionalização da área de assistência social, com uma rede pública espalhada em todo país, absorvendo profissionais com competências específicas e necessárias para o bom desempenho desta complexa função.  Também tem sido fundamental contar com estes profissionais para devolver dignidade àqueles que a sociedade marginaliza constantemente.

Em segundo lugar, surpreende encontrarmos espaço na sociedade para que um dos candidatos ao governo municipal em Curitiba anuncie na campanha que vomitou logo depois que deu carona a um pobre que fedia. Essa desqualificação do ser humano é incompatível com a dignidade que a assistência social tem o dever de resgatar e promover. Associar a imagem do pobre a algo intolerável introduz a proposta subliminar de que só resta à sociedade vomitá-lo. Não se perguntou ao pobre da carona se ele também vomitou por causa do perfume do candidato ou se não vomitou porque não tinha nada no estômago.  Desta forma, estamos criando uma sociedade de segregados, com ricos que só vomitam quando estão de ressaca e aqueles que devem ser mantidos à margem porque nosso aparelho digestivo pessoal e social não pode conviver com eles.

Em terceiro lugar, vemos a proposta do governo do Estado do Rio de Janeiro decretar a extinção da Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social e transformá-la em um departamento da Secretaria de Saúde. Afinal, para que gastar tanto dinheiro com os pobres, já que o Estado tem outras prioridades como pagar os serviços da dívida e desapropriar a ilha do dono do condomínio onde tem uma mansão o ex- governador Sérgio Cabral? Simplesmente uma questão de prioridades, pagar os credores e matar a cidadania é o que bruxa anuncia em todo o país.

Na semana que se comemorou o centenário do Dr. Ulysses Guimarães, o governo insistiu em cortar e depois congelar por 20 anos os gastos nas áreas de saúde, educação e assistência, todas elas subfinanciadas, em comparação inclusive com países mais pobres. Só em relação à saúde, estudo retrospectivo do Grupo Técnico Interinstitucional do Financiamento do SUS aponta que as perdas chegariam a 135 bilhões, caso esta regra estivesse em vigor no período de 2003 – 2015. A não regressão nos aportes orçamentários para cumprir com as obrigações em relação à manutenção da rede de proteção social e garantia dos direitos sociais é um dos pilares da nossa Constituição, que não pode ser descumprido.

“A constituição certamente não é perfeita. ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar sim, divergir sim, descumprir jamais. Afrontá-la nunca. Traidor da constituição é traidor da pátria”, dizia Ulysses.

A sociedade brasileira, que lutou nestas três últimas décadas para colocar a cidadania como valor central da sua recente democracia, assiste boquiaberta ao desmonte da Ordem Social, capítulo mais inovador da Constituição Federal de 1988. Alguns creem que isso não lhe diz respeito, afinal estão no topo da pirâmide social. Outros se preocupam apenas com o aumento do tempo de contribuição para suas aposentadorias. Esquecem que a proposta de desvinculação dos benefícios sociais do salário mínimo será o golpe mortal no projeto de ter uma sociedade com menos pobreza e, fundamentalmente, menos desigualdade. Afinal, hoje podemos nos orgulhar de não ter pedintes idosos nas ruas das cidades, pois oito de cada dez idosos são beneficiários de programas sociais, aposentadorias e pensões. Eles são arrimo de família e movimentam a economia local com seu benefício de um salário mínimo, cuja correção acima da inflação foi o maior fator na redução da desigualdade que experimentamos nos últimos anos.

Se não pararmos a escalada da desmontagem da arquitetura dos direitos sociais estaremos condenados à barbárie e ao autoritarismo, já que a sociedade brasileira não autorizou o governo atual a proceder este retrocesso, mesmo que os representantes no Congresso, que só representam a si mesmo, estejam avalizando tais medidas. A expectativa de que estas medidas reduzam a vulnerabilidade da economia é pífia, embora aumentem a confiança do mercado financeiro de que o governo está aí para defender seus interesses; mas a certeza que a morte da cidadania que começa hoje pelo desmonte dos direitos sociais evoluirá para os direitos e liberdades fundamentais de todos os brasileiros é a grande bruxa que paira sobre nós.

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