Falar de feminismo não é ideologia: é direito!

Só em 2014, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) realizou 485.105 mil atendimentos. No primeiro semestre de 2015 este serviço já contava com 360 mil denúncias de violência ou pedidos de ajuda.

Por Tatiana Moura, do Brasil Post 

Segundo o IPEA (2014), estima-se que cerca de 527 mil pessoas sejam estupradas ou sofram tentativas de estupro no Brasil por ano, embora apenas 10% cheguem a ser oficialmente denunciadas. Das denúncias efetivamente registradas em 2011, 88,5% das vítimas eram do sexo feminino, 50% destas com menos de 13 anos e 70% eram crianças e adolescentes.

A polêmica que se gerou nos últimos dias em torno da questão do Enem que usou a célebre frase de Simone de Beauvoir, “Não se nasce mulher, torna-se” em uma questão para abordar a lutas pela igualdade de gênero desde o século XX, coloca novamente em evidência a perigosa cultura machista e patriarcal que ainda se vive atualmente no Brasil.

Antes de mais nada, importa esclarecer que falar de feminismo não é uma inversão ideológica, ou seja, não existe uma inversão de poder, nem se trata de uma dialética de feminismo vs machismo. Falar de feminismo não se trata de uma discussão conceptual abstrata. Trata-se, sim, de falar de história, de compreender o mundo e a sociedade contemporânea através da complexidade das suas relações de poder e dinâmicas culturais, sociais e econômicas.

Trata-se de questionar uma cultura de dominação masculina de tal forma naturalizada que se torna incapaz de reconhecer a gravidade do assédio em massa, declarado e impune, em relação a uma menina de 12 anos que participa de um reality show brasileiro.

Querer colocar essa reflexão no campo da ideologia política ou partidária é não só de uma grande desonestidade intelectual, mas acima de tudo de uma tremenda irresponsabilidade social e democrática. A prova do Enem reconhece a urgência de refletir acerca da persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira, fruto da falta de questionamento das normas de gênero instaladas. Mulheres e meninas são todos os dias violentadas e silenciadas no Brasil. Do estupro ao assédio, da agressão física ao casamento infantil: a violência não se hierarquiza! Ela existe, ela fere, ela mata.

Da mesma forma que uma mulher se torna mulher, o Instituto Proqqmundo, por meio do seu trabalho, sabe que um homem não nasce violento, torna-se. A importância de debater este tema, de agir contra o machismo e o patriarcado, beneficia não só mulheres, mas também homens e crianças. A promoção de masculinidades não violentas, por meio do questionamento de normas de gênero, parece-nos por isso uma pauta fundamental nas agendas do momento. Das agendas políticas, educativas e sociais. Embora as principais vítimas de violência (oficiais) sejam normalmente de classes com menor poder econômico, sabemos que este é um problema real que atravessa todos os espectros da sociedade brasileira.

Num momento em que tramitam no congresso leis com vista à “proibição do uso da ideologia de gênero na educação nacional”, com a justificativa de que “não cabe à escola doutrinar sexualmente as crianças, desprovidas que são das necessárias compreensão e maturidade, ainda mais quando essa doutrina vai contra todo o comportamento habitual e majoritário da sociedade, pois isso pode causar-lhes danos irreversíveis quanto à sexualidade e quanto a aspectos psicológicos.”(PL 2731/2015), e a “adoção de formas tendentes à aplicação de ideologia de gênero ou orientação sexual na educação.” (PL 1859/2015), preocupa-nos que a cultura de violência e do estupro só tenda a se agravar.

O Enem de 2015 foi histórico. No mesmo dia, no mesmo horário, quase 8 milhões de jovens brasileiros estavam pensando sobre as formas de violência contra a mulher no Brasil, sobre a sua persistência, sobre suas origens e o que deve ser mudado. Isso não é doutrinação. É contribuir para a formação depensamento crítico, para a formação de seres humanos que terão a possibilidade de fazer parte da transformação de uma sociedade, para que esta se torne mais justa e equitativa. Enquanto, aparentemente para alguns, temas como saúde, pluralidade cultural, ética e sexualidade devem ser excluídos da educação e da formação de crianças e jovens, proliferam as notícias de agressões violentas e de intolerância.

Em consequência do caso da menina de 12 anos participante de um programa de TV, assediada às claras por inúmeros homens nas redes sociais, foi gerada uma campanha – #primeiroassedio – em que os internautas, na sua maioria mulheres, vão contando as histórias das situações de assédio que já sofreram nas suas vidas. Em poucos dias os resultados não podiam ser mais reveladores: por um lado o próprio nome da campanha – note-se que se fala do primeiro assédio, ou seja, o primeiro de muitos.

Não só é grave que tantas mulheres tenham histórias para contar (sem contar com todas aquelas que por algum motivo preferem não o fazer), mas é também aterradora a quantidade de comentários ridicularizando esta campanha, principalmente por parte de homens, que as acusam de terem responsabilidade nesses assédios, de que “merecem”, de que “estavam pedindo” ou insinuando que “deveriam era ficar felizes por alguém as querer”. Não só se naturaliza e aceita a violência que estas mulheres sofreram, como se agride de novo.

Neste contexto, não é de estranhar que tenha sido recentemente aprovado o projeto de Lei que dificulta o acesso ao aborto legal às vítimas de violência sexual.Torna-se claro que estamos perante uma sociedade em que muitos acreditam que a mulher ‘mereceu’ ou ‘estava pedindo’ para ser estuprada, e por isso um filho deve vir ao mundo não como um ato de amor, mas sim como uma punição: da mulher, que fique claro, não do agressor.

Esperamos que este debate não só não se encerre por aqui, mas que ganhe as esferas de discussão necessárias para que os retrocessos que o Brasil está vivendo sejam substituídos pela evolução de uma sociedade menos violenta e tolerante com a agressão e a usurpação de direitos. É agressor quem agride e é agressor quem permite que essa agressão aconteça!

Por isso falar de feminismo não é uma questão ideológica: é uma questão de direito!

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