Fugir da escravidão não era uma escolha simples nem voluntária, mas uma forma urgente de enfrentar a violência extrema, o controle cotidiano e a negação sistemática da humanidade imposta pelo regime escravista. Os anúncios de pessoas escravizadas que conseguiram escapar das mãos de seus algozes, publicados em jornais brasileiros ao longo dos séculos XVIII e XIX, evidenciam a brutalidade do sistema e mostram que a fuga não era um erro, mas um gesto legítimo de resistência. Produzidos por escravizadores ou por quem os representava, esses textos tinham como principal finalidade localizar e recapturar aqueles que romperam com o cativeiro. Ainda que inseridos numa lógica de dominação e vigilância, esses registros carregam marcas involuntárias da humanidade e da agência dos sujeitos que pretendiam controlar. As descrições físicas, comportamentais e linguísticas presentes nesses anúncios, ao mesmo tempo em que objetificam as pessoas escravizadas, também apresentam aspectos de suas experiências, habilidades e formas de reexistência.
Entre os diversos elementos recorrentes nesses anúncios, destaca-se a expressão “falla bem”, utilizada para descrever a maneira de falar das pessoas que conseguiram fugir. À primeira vista, expressões como “falla bem” parecem neutras, meramente funcionais. No entanto, ao designar alguém como capaz de “falar bem”, insinua-se, mesmo que de forma involuntária, o reconhecimento de competências linguísticas complexas: domínio da linguagem, articulação de ideias, clareza na comunicação, interação com outros sujeitos — indícios, portanto, de racionalidade e subjetividade. Longe de ser um código neutro, a linguagem é prática social situada.


Como lembram Bakhtin e Volóchinov (2006), a linguagem se constitui na interação verbal concreta, e não em sistemas abstratos ou no psiquismo individual. Toda enunciação é atravessada por relações sociais e ideológicas, falar é sempre ocupar uma posição diante de outras vozes. Nesse sentido, como aponta Travaglia (2009), usar a língua não é apenas exteriorizar pensamentos ou transmitir informações, mas agir sobre o outro, instaurar sentidos, disputar significados. A linguagem, portanto, é sempre política, um campo onde se cruzam intenções, resistências e estratégias.

Partindo dessa compreensão da linguagem como prática social e política, a hipótese central deste trabalho se apoia na escuta senhorial registrada nos anúncios de pessoas escravizadas fugitivas. Ao descrever modos de falar — como “falla bem”, “falla descansado”, “falla pouco” ou “falla ligeiro”, por exemplo —, os senhores, mesmo sem intenção explícita, deixavam transparecer um reconhecimento da capacidade intelectual dos escravizados. A oralidade, nesse contexto, aparecia como um traço observado, nomeado e registrado, ainda que inserido em uma lógica de dominação. Esses anúncios, ao mesmo tempo que visavam capturar corpos, acabavam por revelar, mesmo que indiretamente, vestígios de uma subjetividade que resistia ao silenciamento imposto pela escravidão.
Essas dinâmicas aparecem com frequência nos anúncios publicados em Campinas, assim como em outras regiões do Brasil e do mundo, entre os séculos XVIII e XIX. A cidade, inserida no circuito do café, era marcada pela intensa presença de pessoas escravizadas. Em jornais como Gazeta de Campinas, a menção à maneira de falar é recorrente como elemento relevante para a identificação. A reflexão que venho desenvolvendo parte da ideia de que esses registros indicam que a linguagem, longe de ser neutra, ocupava um lugar estratégico tanto nos mecanismos de controle quanto, de forma paradoxal, nos gestos de reconhecimento.
No entanto, esse reconhecimento era profundamente contraditório. Apesar dos diversos registros que documentam a trajetória da língua e da fala no Brasil, observa-se que, ao mesmo tempo em que a habilidade de “falar bem” era mencionada nos anúncios de escravizados fugitivos, essa mesma capacidade era negada nos discursos públicos que sustentavam a escravidão. A inteligência e a articulação das pessoas escravizadas, ainda que percebidas no cotidiano, eram excluídas das representações oficiais. A linguagem funcionava como critério para justificar a suposta inferioridade racial, e qualquer sinal de domínio da oralidade era frequentemente interpretado como exceção, dissimulação ou ameaça. Essa perspectiva também aparece nas descrições de viajantes e cronistas do século XIX, que registravam a fala das pessoas negras de forma estigmatizada, atribuindo-lhe traços de erro, atraso ou infantilidade. Reforçados pela literatura e pela imprensa, esses estereótipos consolidaram uma imagem racializada da linguagem, desviada dos padrões considerados cultos da língua (Silva Neto, 1963, apud Petter, 2006/2007, p. 76–77).
Esse processo de desqualificação se manifestava em diferentes esferas. Discursos políticos, científicos e literários do século XIX insistiam em representar os negros como naturalmente inferiores. Autores como Nina Rodrigues buscaram sustentar essa ideia por meio de argumentos biologizantes no campo da medicina legal. Na literatura, exaltava-se a civilização branca como modelo ideal. Já nas políticas públicas, o acesso dos negros à educação era restringido sob a justificativa de que a alfabetização lhes era desnecessária ou perigosa para a ordem social.
A legislação educacional contribuiu para consolidar essa exclusão. A Constituição de 1824 e o Decreto de 1854 formalizaram a proibição do acesso de pessoas escravizadas às escolas públicas. Mesmo os libertos enfrentavam inúmeros obstáculos estruturais e simbólicos, que limitavam sua entrada e permanência no sistema escolar (Almeida; Sanchez, 2016, p. 235–238). A presença de crianças negras nas escolas era frequentemente tratada como risco moral e social, sendo associada ao temor de sua influência ou politização (Almeida; Sanchez, 2016, p. 236-237). Com isso, reforçava-se a ideia de que as pessoas negras não pertenciam ao espaço do saber. A animalização da população negra, produzida por meio da negação de razão, linguagem e civilidade, sustentou por muito tempo a imagem do negro como força de trabalho bruta — uma representação politicamente funcional.
É nesse contexto que se compreende o silenciamento imposto à oralidade negra. Por um lado, ela era reduzida à condição de ruído, fala sem valor. Por outro, era temida como ameaça: uma pessoa escravizada que falava com clareza, argumentava ou transitava socialmente podia desafiar os mecanismos de controle. Os anúncios revelam, ainda que de forma indireta, essa tensão: ao registrar a fala como traço de identificação, deixavam escapar que a linguagem era, na prática, uma das principais ferramentas de resistência. Ao marcar essa habilidade, os senhores escravizadores expunham uma contradição incontornável — a tentativa de capturar corpos cuja humanidade se fazia presente justamente por meio da fala.
Essa contradição não era apenas retórica; tratava-se de uma estratégia de poder. O apagamento da intelectualidade negra cumpria funções políticas precisas: justificava a escravidão, legitimava a desigualdade e sustentava a ideia de que apenas alguns teriam pleno direito à linguagem. O que estava em disputa, nesse cenário, era o direito de existir como sujeito capaz de nomear o mundo.
Essa lógica integra um processo mais amplo de apagamento das pluralidades linguísticas e culturais que marcaram a formação histórica do Brasil. A construção da norma padrão como critério de prestígio contribuiu para desqualificar sistematicamente os modos de falar associados a populações negras, indígenas e periféricas. Como observa Bakhtin (2000), toda atividade humana é mediada pela linguagem, e os enunciados refletem as condições sociais e finalidades que os produzem. Nesse sentido, os anúncios de escravizados fugitivos trazem indícios de como a oralidade era observada e avaliada no cotidiano. Expressões como “falla bem”, “fala explicado” ou “falla como um crioulo” indicam que os senhores escutavam atentamente as formas de expressão verbal dos escravizados, associando-lhes traços específicos. A fala, nesse contexto, não era apenas um meio expressivo, mas também um marcador de conduta, posição social e, por vezes, de ameaça.
Saber falar bem podia indicar a capacidade de argumentar, simular liberdade, negociar ou escapar. A oralidade se configurava, portanto, como uma forma de ação estratégica. Embora parte dessas línguas fosse aprendida por padres e senhores em contextos como a catequese ou as relações domésticas, seu uso era rigidamente controlado fora desses espaços. Essa ambivalência aponta para uma lógica de dominação que, mesmo admitindo a força da linguagem entre os escravizados, procurava restringir sua manifestação pública (Petter, 2006/2007, p. 86).
O destaque conferido à fala nos anúncios expressa um aspecto central da ordem colonial: a linguagem não se limitava à comunicação, mas constituía um território de vigilância e resistência. Ao descrever fugitivos como alguém que “falla bem”, “falla explicado” ou “falla ligeiro”, os senhores acabavam registrando, ainda que de modo involuntário, práticas linguísticas diversas e complexas. Esses registros apontam para formas de saber incorporadas ao cotidiano, modos de escuta e expressão que confrontavam a lógica de desumanização imposta pelo sistema escravista. Reconhecer essas vozes, mesmo que de forma indireta, pode significar admitir pensamento, articulação e agência em sujeitos que se buscava reduzir à obediência silenciosa.
Durante a escravidão, a oralidade operava como ferramenta concreta de sobrevivência. Nos ambientes urbanos, marcados por intensa circulação de pessoas e línguas, comunicar-se entre códigos – em português, em línguas africanas, em crioulos ou em formas híbridas – era uma habilidade vital. Pode ser que falar bem não significava aderir a normas gramaticais eurocentradas, mas demonstrar capacidade de negociar, dissimular, adaptar-se e, por vezes, escapar. Essa competência mobilizava memória social, coletiva e cultural, escuta, improviso e inteligência estratégica. Embora a fala das populações negras fosse historicamente desqualificada nos discursos oficiais, ela seguia operando como marca de pertencimento, proteção e resistência. Como observa Petter (2006/2007, p. 63–67), mesmo fora de seus contextos originais, as línguas africanas continuaram exercendo funções fundamentais nas comunidades negras, tanto como forma de preservação cultural quanto como código de distinção e resistência diante da violência e do silenciamento. Os anúncios de fuga, ainda que produzidos para reforçar o controle senhorial, deixavam escapar justamente aquilo que tentavam negar: que pessoas negras falavam, pensavam e agiam com astúcia diante da opressão.
Estas reflexões, portanto, propõe tensionar essa contradição: de um lado, a negação histórica da intelectualidade negra; de outro, os próprios registros senhoriais que, mesmo sem querer, reconhecem o valor da fala como expressão de saber. Ao analisar o lugar simbólico da linguagem nos anúncios, busco compreender a oralidade como tecnologia de memória coletiva, existência e resistência, um modo de estar no mundo que descentraliza a ordem da escrita e desafia a lógica da subalternização pela linguagem.
Esses anúncios registram que a fala não era apenas instrumento funcional; ela era também índice de subjetividade, de raciocínio, de presença. Esse reconhecimento, no entanto, não é neutro. Ele ocorre em um sistema que construiu, historicamente, formas de hierarquização baseadas na linguagem, silenciando as epistemologias que escapavam ao padrão branco, culto e letrado.
Como observa Lima (2012), a “língua correta” passou a funcionar como critério de exclusão dos circuitos sociais e intelectuais, naturalizando um preconceito linguístico que se mantém como uma das formas mais persistentes de desigualdade no Brasil. No contexto escravista, essa distinção já operava: reconhecer que um escravizado “fala bem” era admitir uma habilidade que contrariava a ideologia dominante, mas ao mesmo tempo submetê-la a uma vigilância. Sendo assim, falar bem era perigoso, porque implicava autonomia, negociação, cálculo, traços que desafiavam a ficção da inferioridade racial.


Pode ser por isso mesmo que os senhores prestavam atenção na fala. Eles descreviam entonações, sotaques, modos de dizer, não apenas para identificar, mas também para distinguir. Essa escuta senhorial, ainda que atravessada por interesses de controle, jogava luz sobre um dado importante: havia inteligência e habilidade linguística nos sujeitos escravizados. A linguagem, aqui, não pode ser reduzida à norma; ela é prática social, é tecnologia de existência, é memória falada.
Ao trazer a crítica de Lima (2012) para esse contexto, é possível afirmar que o preconceito (racismo) linguístico tem raízes mais profundas do que se imagina. Ele não nasce apenas da escola ou da gramática, mas da própria estrutura colonial que precisou negar, desde o início, que pessoas negras pensavam, falavam, criavam. O que os anúncios mostram — apesar da intenção oposta — é que falavam, sim. E falavam bem.
Esse tipo de documento pode ter registrado uma contradição estrutural no pensamento colonial: embora o regime escravista exigisse a negação da humanidade das pessoas escravizadas para justificar sua exploração, a própria dinâmica cotidiana da escravidão expunha capacidades cognitivas e linguísticas inegáveis por parte dos sujeitos escravizados. Saber falar bem não era apenas um traço descritivo ou funcional, mas um recurso socialmente perigoso, pois podia possibilitar o trânsito por diferentes espaços, a articulação de estratégias de fuga e a manipulação de situações em benefício próprio. A linguagem, nesse cenário, como já dito e mais uma vez reafirmando, operava como tecnologia de ação, e o domínio da palavra — em suas formas mais sutis ou elaboradas — podia significar vantagem, deslocamento ou resistência.
Na estrutura social colonial e em seus desdobramentos modernos, o prestígio da fala foi diretamente vinculado à ideia de civilização e racionalidade. O uso fluente e articulado da língua passou a ser associado a atributos como inteligência, autoridade e pertencimento. Contudo, esse modelo foi racializado: estabeleceu-se como ideal a norma linguística branca, letrada e europeia, enquanto as demais formas de expressão, como as línguas africanas e os modos de falar das populações negras, foram desqualificadas, mesmo quando carregavam memórias coletivas, estratégias de sobrevivência e visões complexas de mundo. Como observa Petter (2006/2007), ainda que essas línguas tenham perdido seu status de sistemas plenos, elas mantiveram vestígios de sua presença viva por meio do contato prolongado com o português, operando como códigos culturais marcados pela resistência.
Ana Lúcia Silva Souza (2011) contribui de forma importante para essa discussão ao propor a noção de letramentos de reexistência. Ela elucida como que as práticas linguísticas das populações negras e periféricas, mesmo quando não reconhecidas institucionalmente, operam como formas legítimas de produção de sentido e memória. Essas práticas atravessam não só a fala, mas também os corpos, os gestos, os ritmos, os grafismos, os modos de vestir e de se movimentar. Elas constituem formas de lembrar, narrar e resistir que não cabem nos parâmetros escolares de letramento, mas que produzem conhecimento, história e agência.
Ao descrever como falavam as pessoas escravizadas, os anúncios acabam registrando vestígios desses letramentos. A fala não é neutra: ela é um ato, uma inscrição, uma forma de se afirmar como sujeito em um mundo que nega a plena humanidade. Por isso, este ensaio propõe compreender a oralidade mencionada nos anúncios não apenas como instrumento de identificação, mas como tecnologia da marca de existência — uma linguagem que escapa ao controle e que, ao mesmo tempo em que denuncia o sistema, reinscreve o sujeito negro como agente.
Homi Bhabha (1998) contribui para essa análise ao propor que as narrativas silenciadas pelo colonialismo não estão presas ao passado. Elas continuam a se atualizar no presente, justamente porque a violência simbólica que as produziu segue operando. Para ele, é preciso romper com uma ideia linear de tempo, como se o que foi negado pertencesse a um “ontem” superado. Ao contrário, as memórias feridas e as vozes interrompidas continuam a produzir sentido, a exigir escuta, a ocupar o presente com outras formas de narrar.
Nos anúncios, essas vozes aparecem fragmentadas, mas insistentes. Elas nos forçam a escutar o que o sistema tentou calar: que pessoas negras falavam, e falavam com intenção, com invenção, com projeto. O reconhecimento involuntário dessas falas nos leva a reconstituir um passado que não está atrás de nós, mas que insiste em atravessar o futuro. Como propõe Bhabha, esse não é um gesto nostálgico é um gesto de vida. O que está em disputa é o direito de continuar falando, mesmo depois de tudo o que tentaram silenciar.
Sendo assim, tenho tentando sistematizar formas de compreender esses anúncios e compartilho:
I. A fala como marca de inteligência e periculosidade
Nos anúncios de Campinas, “falar bem” não indica um domínio da norma padrão escrita — até porque muitos desses sujeitos eram africanos ou seus descendentes, falantes de línguas africanas, crioulos ou formas híbridas do português. Dizer que alguém “fala bem” é reconhecer, na prática, que essa pessoa sabe circular socialmente, articular ideias, convencer, manipular e escapar. Há casos nos quais essa habilidade linguística é acompanhada de alertas: o sujeito é também descrito como “malicioso”, “esperto”, “muito sabido”. Nesse sentido, a fala aparece como índice de periculosidade, não porque revela violência, mas porque indica inteligência estratégica. Falar com desenvoltura, em um mundo onde a palavra era controlada, era um gesto de liberdade. Os senhores sabiam disso.
II. A fala como sinal de domesticidade e vigilância
Outros anúncios registram que o cativo “fala brando”, “fala pouco”, “meio fala” ou “fala baixinho”. Essas formas de descrever tentam localizar o sujeito em uma posição de menor risco: o que fala pouco seria, supostamente, mais obediente ou domesticado. Mas essa leitura pode ser invertida. Falar pouco pode ser também estratégia: silêncio como tática de proteção, economia de palavras como forma de passar despercebido. A fala controlada, nesse caso, não é ausência de pensamento, mas uso calculado da linguagem frente à ameaça constante da violência.
III. A fala como marca de “falta”: tentativa de inferiorização
Em alguns anúncios, a fala aparece como “incapacitado” — “fala enrolado”, “fala cortado”, “não fala bem”. Essa tentativa de classificar o outro como incapaz reforça o projeto colonial de desumanização. No entanto, o que esses registros podem acabar revelando é o esforço de lidar com múltiplos códigos linguísticos: africanos e crioulos, por exemplo, que se comunicavam por meio de línguas maternas, dialetos regionais e adaptações do português. A “fala enrolada” não é sinal de ignorância, mas de trânsito entre mundos. O que o senhor vê como erro é, muitas vezes, índice de uma complexidade linguística que escapa ao seu entendimento.
IV. A fala como geografia e performance
Há também tentativas de situar a pessoa escravizada a partir do modo de falar: “fala como branco”, “fala com sotaque de Minas”, “fala descansado”, “fala ligeiro”. Aqui, o objetivo pode ser localizar, identificar, restringir. Mas ao fazê-lo, os senhores acabam registrando aquilo que tentavam apagar: o ritmo, a cadência, o timbre da fala negra. A musicalidade da oralidade é notada — e temida. O que se insinua nessas descrições é a percepção de que a fala não é só um som: é uma performance social, uma memória encarnada, um gesto de subjetividade que se escapa.


Por fim, nesse sentido, “falar bem” aparece nos anúncios como um marcador ambíguo: ao mesmo tempo que humaniza a pessoa escravizada— conferindo-lhe racionalidade, habilidade, presença — também o torna mais perigoso (no olhar do colonizador). A fala é o que denuncia a não-coisificação. É o que escapa. É o que ameaça. O próprio ato de registrar que alguém “fala desembaraçado” ou “fala com clareza” demonstra que, no imaginário senhorial, a linguagem era índice de subjetividade e, portanto, de risco para a ordem escravista.
Esses exemplos mostram que a oralidade negra, longe de ser um vestígio menor da experiência escravizada, constitui uma forma própria de produção de conhecimento. Uma epistemologia da fala, moldada nas brechas do sistema, operando como tecnologia de sobrevivência, mediação e invenção.
No entanto, a história tratou essas práticas com desconfiança e desprezo (estratégia deles). O que não se conformava à norma foi tratado como ruído, erro, ignorância. Porém, como nos lembra bell hooks (2008), ao falar do vernáculo negro, a fala de sujeitos racializados foi sistematicamente excluída do estatuto de saber. E ainda assim, ela sobreviveu. Ela desafia. Ao reconfigurar a linguagem dominante, essa fala se torna contra-hegemônica — uma prática de liberdade. Falar, nesse contexto, não é apenas comunicar: é desobedecer, é escapar, é insistir em existir.
Nascimento (2019) aponta que o racismo não opera apenas sobre corpos, mas também sobre as línguas. Ele se infiltra nos critérios de correção, nas ideias de clareza, nas noções de inteligibilidade. O preconceito de cor (Racismo) no Brasil se disfarça, muitas vezes, como “preconceito linguístico” (racismo linguístico) — uma forma sutil e persistente de manter a exclusão. A fala negra foi vigiada, corrigida, punida.
Mas como vimos ao longo desse ensaio, a oralidade negra, que tantos tentaram reduzir a ruído, é saber. E como saber, ela segue ecoando, em cada palavra que nomeia o mundo com outras gramáticas, em cada silêncio que se recusa a ser apagado.
Referências Bibliográficas
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hooks, bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, p. 857–864, set./dez. 2008.
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NASCIMENTO, Gabriel. Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo Horizonte: Letramento, 2019.
PETTER, Margarida Maria Taddoni. Línguas africanas no Brasil. África: Revista do Centro de Estudos Africanos da USP, São Paulo, n. 27/28, p. 63–89, 2006/2007. Disponível em: https://revistas.usp.br/africa/article/view/96063. Acesso em: 22 jun. 2025.
SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança, hip hop. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.
Layne Gabriele é mestranda em Linguística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp).
Sua pesquisa se dedica às áreas de memória coletiva e social, tecnologia, oralidade e linguagem, com o objetivo
de evidenciar como as produções atravessadas pela linguagem negra, pelas práticas periféricas e pela memória
coletiva constituem formas legítimas de produção de conhecimento e de tecnologia nos territórios negros e
favelados.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.