Faltava falar das flores

Eu sou conversadeira, sempre fui. Minha mãe, Dona Anna, adorava dizer que, desde menina, eu falava mais que a “preta do leite”. Desconheço a origem da expressão, mas com base no meu comportamento, deduzo que significa muito, demasiado, excessivamente. Pois tudo que já fui capaz de vocalizar em meio século de vida não chega perto do tanto que tenho dito em três meses da pandemia da Covid-19. Nunca antes. São lives e mais lives. E debates e telejornais e programas de rádio e gravação de podcasts e aulas e horas de áudio com familiares, amigos, recém-conhecidos.

Na maior parte das vezes, as conversas tratam de condições de saúde, dos efeitos das crises sanitária, econômica, social e política na vida brasileira, das mulheres, dos negros, dos jovens. Tenho especulado um monte sobre a retomada da economia, vergonhosamente precipitada em território nacional como não fora em outras paragens; que tamanho terá a recessão; quão nociva pode ser a deflação em tempos de atividade debilitada; qual mercado de trabalho emergirá da temporada de distanciamento social; como ficarão comércio, serviços, turismo, complexo arte-cultura-entretenimento. Para sempre teletrabalho?

Aqui abro um parêntesis, velho hábito da oralidade, para anotar que normas de vigilância sanitária e operações de fiscalização habituais na economia formal não darão conta da proteção contra o coronavírus. Num país em que quatro de cada dez ocupados estão na informalidade, saúde e segurança do trabalho pós-pandemia dependerão também do sistema público de assistência social, aniquilado em anos passados e ainda não reconstituído. Lutemos por ele, tanto quando pelo Sistema Único de Saúde. Política social tampouco é juntar num balaio um conjunto de programas de transferência de renda com propósitos diferentes e lacrá-lo com o rótulo Renda Brasil. Fecho parêntesis.

Vez por outra, na teia de conversas, alguém me indaga sobre como é possível, com tanta informação, tamanha preocupação, profusão de más notícias, manter-se sã, sorrir. Toda noite, madrugada adentro, me abrigo no quilombo Teresa Cristina. É da cantora, compositora e grande contadora de histórias o ambiente virtual em que eu e meus velhos e novos amigos nos refugiamos em um programa de preservação da saúde mental embasado em afeto e riso e lágrimas e canções. Tetê cura e posso provar.

Toda manhã, vejo flores. Semanas atrás, usei esse espaço para escrever sobre casa. Lembrei que a desigualdade brasileira, a violência, a precarização das condições de vida não fazem de todos os domicílios lares. Eu moro numa rua calma, com um pedaço de mata bem perto. O meu apartamento tem um quintal; nele, um pequeno jardim.

Faço aniversário em agosto e em vários deles ganhei orquídeas, a maioria do gênero Phalaenopsis, também chamada de orquídea borboleta. Imitei dos porteiros do Rio de Janeiro o hábito de replantá-las. Eles enfeitam árvores da cidade com mudas abandonadas por quem vê beleza na flor, mas não enxerga a vida em raízes e folhas. Plantei a primeira, deu certo. Peguei jeito, já tenho uma dúzia.

Todo ano, quando o outono dá as caras, as orquídeas começam a florescer. Em 2020, a temporada coincidiu com a pandemia, o home office, a tristeza do isolamento, a saudade dos amigos. Eu cuido, observo e converso com as plantas. O jardim me apresenta uma surpresa a cada dia: ora na forma de pragas, ora nas visitas indesejadas de morcegos que descobriram a jabuticabeira recém-chegada, ora em flores que se mostram. Bem-te-vis são presenças assíduas; outra tarde apareceram três tiês-sangue; ainda agorinha, enquanto escrevo essas linhas, dei com a algazarra de um par de micos em galhos distantes.

É o jardim que me faz companhia e ajuda a reparar na beleza presente num mundo adoecido real e metaforicamente. As orquídeas resistem. E estão a me confirmar que não há ciclo sem fim. Esse tempo há de passar. Outras floradas virão.

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