Faltou dizer

No conflito da Rocinha, autoridades devem explicações e pedido de desculpas aos jovens estudantes, à comunidade, ao Rio, ao país

por Flávia Oliveira no O Globo

Na virada deste século, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) fez do Rio de Janeiro a primeira cidade do planeta a ter seu próprio relatório de desenvolvimento humano, um dado em particular chamou atenção dos pesquisadores encarregados da empreitada. Mantido o ritmo de avanço social, modesto à época, a Rocinha levaria 91 anos para igualar os indicadores de renda, educação e longevidade que a vizinha Gávea já exibia desde a última década dos anos 1990. Separados por uma via, os dois territórios materializavam a desigualdade que forjou o Rio de Janeiro — e também o Brasil. Nascer e crescer no lado rico, de alto IDH, significava viver 13 anos mais, ter o triplo de anos de estudo e seis vezes o rendimento familiar.

Quase duas décadas depois, o abismo novamente se escancara. Dessa vez, na forma de um confinamento que adiou o futuro de dezenas de jovens inscritos no exame de qualificação do vestibular 2018 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), outra instituição fluminense que teima em sobreviver, apesar do empenho oficial em asfixiá-la. O grupo de alunos do Projeto de Ensino Cultural e Educação Popular (Pecep) não conseguiu sair da comunidade na manhã do último domingo, em razão do confronto entre grupos civis armados pelo comando do tráfico de drogas na maior favela da Zona Sul carioca. Viver na Rocinha foi a diferença entre comparecer ou não no local da prova.

Os estudantes, violados no direito constitucional de ir e vir, fariam exame de linguagens, matemática, ciências da natureza e humanas. Responderiam sobre o livro “A hora da estrela”, último romance de Clarice Lispector. A obra fala de Macabéa, migrante nordestina que sobrevive como datilógrafa no Rio, se apaixona por um mau-caráter, é diagnosticada com tuberculose, sonha com o futuro de amor, fama e fartura prometido por uma cartomante, mas morre atropelada diante de pedestres indiferentes.

Coincidência cruel, a desamparada protagonista de Clarice carrega características de moradores da Rocinha. A favela concentra grande número de nordestinos que vieram para o Rio de Janeiro em busca de trabalho e melhores condições de vida; tem desde os anos 1990 linha regular de ônibus para o Ceará. Apresenta uma das maiores taxas de incidências de tuberculose da América Latina, dez vezes maior que a média brasileira. Enfrenta a indiferença de governos e sociedade. Não perde a fé.

Na comunidade vivem homens e mulheres que trabalham duríssimo para ver os filhos na universidade. O caos da segurança pública, a grave crise institucional e financeira do estado, como a Mercedes-Benz do livro, atropelaram os sonhos de Uerj de jovens da Rocinha. Feriram o presente, mas não mataram o futuro. Eles hão de insistir.

Aos jovens estudantes, à comunidade acuada, à cidade perplexa, o governo do Rio tem de prestar contas. Em cinco dias de conflito, nem o governador Luiz Fernando Pezão nem o secretário de Segurança Pública, Roberto Sá, foram capazes de explicar por que, embora soubessem do enfrentamento iminente, não agiram para evitar a invasão da Rocinha por uma centena de homens fortemente armados oriundos de áreas tão distantes quanto o Morro de São Carlos, no Centro, e a Vila Vintém, em Padre Miguel. Ou qual a razão de deixarem policiais expostos ao conflito em via pública. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, precisa dizer como um líder de facção criminosa, Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, consegue ordenar uma reação ao ataque inimigo do cárcere federal, em Rondônia.

A crise aguda da segurança pública escancara a falta de política e a incapacidade de diferentes níveis de governo trabalharem em conjunto na prevenção e no combate ao crime. Além disso, amplia o fosso da desigualdade social, já agravada pelo ambiente de recessão, aumento do emprego e falência do setor público. As autoridades devem explicações e um pedido de desculpas. Aos jovens estudantes da Rocinha. À comunidade. Ao Rio de Janeiro. Ao Brasil.

Leia mais: https://oglobo.globo.com/sociedade/faltou-dizer-21848988#ixzz4tbkc2NxO
stest

+ sobre o tema

Polícia investigará homens que transmitem HIV de propósito

Envolvidos ficaram conhecidos na web como ‘clube do carimbo’,...

Por que quase não há mulheres negras em campanhas sobre câncer de mama?

Elas têm 45% mais risco de morrer de câncer...

Programa com apoio da ONU quer garantir 3.000 lideranças negras até 2030

A 99jobs colocou no ar plataforma que servirá de...

STF reconhece covid-19 como doença ocupacional e permite autuação de empresas

Com a decisão da Corte, ficam sem validade o...

para lembrar

Propaganda da Riachuelo é exemplo de distanciamento publicitário captado em pesquisa

 Pesquisa Data Popular/Instituto Patrícia Galvão já havia captado distanciamento...

Jornalistas baianxs oferecem 2ª edição de minicurso sobre semiótica e racismo na mídia brasileira

A Semiótica como ferramenta de análise do racismo midiático...

6 multinacionais envolvidas com trabalho escravo e exploração infantil

Infelizmente a escravidão ainda é uma realidade mundial que não se restringe...
spot_imgspot_img

Em paralelo à CSW, organizações promovem debate sobre como avançar nas políticas de raça e gênero no mundo

Em paralelo à 69ª Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW69), Geledés-Instituto da Mulher Negra e a ONG Akina Mama wa Afrika (AMwA) promoveram...

Lançamento do livro “Combate ao Racismo no Mercado de Trabalho” reforça a luta por igualdade e inclusão

Na próxima quinta-feira, 20 de março, será lançado o livro "Combate ao Racismo no Mercado de Trabalho", no Sindicato dos Químicos de São Paulo....

ONU acolhe propostas de Geledés em registro oficial da 69ª CSW

Nesta segunda-feira, 10 de março, ocorreu a abertura da 69ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher, na sede da Organização das Nações...
-+=