A crise financeira agravou a violência no Rio, mas não pode ser apontada como causa dos tiroteios desta semana, diz a socióloga Julita Lemgruber, 72, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes.
Ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário e ex-ouvidora de polícia do Rio, Lemgruber diz que há um vácuo de poder político no Estado, o que prejudica o planejamento da segurança.
A socióloga critica a falta de ação das autoridades para impedir a invasão da Rocinha por bandidos de facção criminosa no último final de semana (o Estado admitiu ter informações de que isso ocorreria), e é cética em relação ao uso das Forças Armadas nas comunidades cariocas.
Folha – Como o Rio de Janeiro chegou a esta situação?
Houve absoluta ausência de uma política de segurança pública. As UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) sempre foram uma estratégia restrita a uma área geográfica. Jamais se viu ao longo desses anos uma política de segurança pública para toda a região metropolitana, em que as UPPs fossem parte de um planejamento maior.
Foi míope apostar numa estratégia que, na verdade, funcionou para transmitir a sensação de uma cidade segura para a Copa do Mundo e a Olimpíada, mas não se sustentou no longo prazo. As UPPs requerem quantidade enorme de recursos humanos e materiais e sua expansão aconteceu de forma desordenada e rápida demais. O que se vendia não se concretizou.
Por que não se concretizou?
Porque policiamento comunitário demanda principalmente o estabelecimento de relações com a comunidade de tal forma que ela se sinta protegida e valorize a presença policial. Isso aconteceu apenas marginalmente.
Em algumas favelas menores, a UPP conseguiu criar algum tipo de relação de confiança entre a polícia e a comunidade, mas em favelas grandes isso não aconteceu.
Nesses locais, os policiais das UPPs eram vistos com desconfiança, como forças de ocupação e frequentemente violadoras de direitos dos moradores. O fracasso das UPPs é responsabilidade principalmente da PM.
O que deveria ter sido feito além das UPPs?
Política de segurança pública se faz com diagnóstico, planejamento e monitoramento. Nos últimos anos não se trabalhou com um plano de segurança pública, com ações integradas entre as diversas forças policiais. A Polícia Militar, principalmente, trabalhou reativamente, apagando incêndios, usando da violência nas áreas da pobreza.
Além das falhas nas UPPs, quais outros problemas?
Há também uma crise de legitimidade, um vácuo de poder no Rio. Um ex-governador na cadeia, ex-secretários presos e respondendo a processos por corrupção. O secretário de segurança está desacreditado, não parece comandar as polícias que agem praticamente por conta própria, na ponta.
O próprio governador admitiu que sabia da invasão da Rocinha [por membros de facção criminosa]. Por que isso não foi impedido?
Com os serviços de inteligência e planejamento, as entradas da favela, assim como os acessos pela mata, poderiam ter sido efetivamente fechados. Se isso tivesse sido feito, toda essa espetacularização da presença das Forças Armadas poderia ter sido evitada.
Agora estão falando em pedir autorização para mandados coletivos de busca e apreensão. Isso seria inaceitável em qualquer bairro de classe média. Por que os direitos dos moradores da Rocinha podem ser violados dessa forma?
A crise financeira do Estado pode ser apontada como causa dessa violência?
Não credito os tiroteios à crise financeira. O Rio vive situação de tal dramaticidade que não é possível isolar variáveis. O que estamos vendo é o resultado de incompetência e falta de planejamento de política de segurança pública.
Mas, certamente, a crise econômica agravou todo o quadro. Os policiais não têm recebido adicionais já garantidos em seus salários, as viaturas policiais estão caindo aos pedaços, não há manutenção dos postos policiais.
Nas próprias UPPs as condições de trabalho estão ainda mais vergonhosas do que antes. Além disso, o Rio de Janeiro tem uma situação complicada quanto à dinâmica da criminalidade. Enquanto em São Paulo o PCC impôs algum tipo de arranjo no varejo do tráfico de drogas, no Rio de Janeiro há uma disputa histórica entre facções.
É bom lembrar que nesta sexta houve tiroteios em sete comunidades do Rio, pelo menos 7.000 alunos não puderam ir à escola. A Rocinha chama mais atenção por sua localização, em área próxima a moradias de classe média alta, mas quem está sofrendo é a população das favelas.
Qual sua opinião sobre a atuação das Forças Armadas em situações como a da Rocinha?
O Exército ocupou a favela da Maré por 15 meses, a um custo de R$ 600 milhões entre 2014 e 2015. Hoje, qualquer um que vai à Maré observa os jovens do varejo do tráfico circulando com desenvoltura e portando fuzis De que adiantou a presença das Forças Armadas? É inaceitável gastar recursos dessa forma. Isto é enganar a população e traz uma breve sensação de segurança que não se sustenta.
Precisamos ter coragem de enfrentar realmente a questão e não somente criminalizar o tráfico de drogas que ocorre na favela, enquanto se convive com o tráfico em outras regiões da cidade. O uso de drogas vai continuar, queiramos ou não. O que precisamos, enquanto sociedade, é admitir que a proibição das drogas não funcionou.